Estava eu, recém-chegado do trabalho, ainda com as roupas de batalha, pensando em escrever uma crônica, mas paralisado pela preguiça. Toca a campainha. É Nelson Rodrigues, com o cigarro nos lábios, gravatas e suspensórios:
- E aí, tu não vais escrever?
- Nelson, é você? Que honra, a casa está uma bagunça, entre, entre (afasto a pilha de jornais da entrada) ...
Arranjo uma cadeira para Nelson e me sento em outra:
- Nelson, você apareceu em boa hora. Queria escrever, mas não sei sobre o quê.
- Problema besta. Escreve uma história sobre uma viúva infeliz que se mata tomando guaraná com formicida.
- O que é isso, Nelson? Isso seria te plagiar.
- Plagiar a vida? Isso é a realidade. Como ela é.
- Já há tantas histórias sobre isso...
- Que nada, não com a tua visão.
- Tá, pode ser. Mas é um tema meio batido, sem profundidade.
- Imagina! Você tem que ser raso mesmo, escrever rápido, sem pensar muito. Fazer alta-costura para as massas. Bolar uma história por dia, entre o matraquear das máquinas de escrever da redação, com o filho da puta do chefe na tua nuca, pedindo o texto no prazo.
- Não foi você mesmo que disse que toda unanimidade é burra?
- Falei. Você quer escrever para ser lido ou quer guardar a sua voz, como a voz de Deus no Tabacaria do Álvaro de Campos, no fundo do poço? Você prefere ser um gênio incompreendido e morrer louco como o Van Gogh, sem um puto, ou quer ter o sucesso do Dan Brown ou do Stephen King?
- Acho que ser o Dan Brown é mais divertido.
- Claro que é. Até porque gênio você não é. Talvez só incompreendido e louco.
- Poxa, Nelson, essa magoou. Mas estou cansado. Ainda estou de gravata e camisa social, acabei de chegar...
- Crie sua lenda, rapaz. Depois você fala que escrever era a tua tara. Que você não suportava o teu serviço chato e corria de volta, doido para escrever. Que você rascunhava histórias na repartição. Esboçava tramas no trânsito. Criava personagens na cadeira do Teatro Municipal, escutando Mozart. Você já está até bem para a foto do livro, um ar de escritor blasé, de mangas de camisa e gravata torta. Fuma um, toma um uísque, para clarear as idéias.
- Ainda estou sem assunto.
- Pegue uma obsessão sua. Escreva sobre uma garota que te abandonou, uma derrota, uma humilhação. Lembre de quando você corou de vergonha ou de raiva. Espie o mundo pelo buraco da fechadura. Seja moleque, menino, leve, leviano. Dê vazão a uma tara.
Levanto, cheio de moral:
- Não sei quais são minhas obsessões, Nelson. Sei que já tenho um tema, obrigado. Vou falar de uma vez em que espionei pelo buraco da fechadura uma amiga da minha irmã tomando banho, na minha casa, durante a adolescência. Quando ainda existiam fechaduras com buracos grandes. Que gostosa!
Nelson se levanta também. Dá pulinhos, esfrega as mãos:
- É isso, meu jovem. Fala mais. Ela era bonita? Novinha? Virgem?
- Nelson, você vai ter que ler a história mais tarde, como todo mundo. Eu vou escrever outro dia. Aliás, porque eu já escrevi o post de hoje.
- O quê, nossa conversa?
- Que crica, Nelson! Está bom, praticamente um diálogo de Platão.
- E você é o Platão?
- Não sei. Mas você é o Sócrates. E eu te condeno a tomar cicuta.
A visão turva por um segundo. Ao abrir os olhos de novo, Nelson não estava mais lá.