Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

Nome:

Advogado, vive em São Paulo

domingo, novembro 30, 2008

A Arca do Centenário

Estudei Direito no Largo de São Francisco. Passei os dois primeiros anos na faculdade meio perdido. Não me destacava nos estudos. Entrei para o Centro Acadêmico e não me achei. Escrevi textos inflamados, com alguma repercussão, mas nada gloriosos. Gostava das festas e dos jogos jurídicos, e ia empurrando tudo com a barriga. Até que vi um anúncio num cartaz:
- Entre para a B.A.I.S.F.!
Era a Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco, responsável por fazer a trilha sonora da torcida nos jogos. Na época não vi muita graça no trocadilho com um dos recursos do nosso emaranhado processual civil.
Procurei me informar sobre quem era da Bateria, e não vi muita abertura para que eu entrasse, era uma panelinha de quintanistas que não parecia amistosa. Só quando o ano acabou (e eles se formaram) que a formação da B.A.I.S.F. mudou. Entrou um colega de classe, o Reinaldo, que logo tomou conta e começou a agitar as coisas, com novos integrantes e instrumentos.
Mas eu ainda não entraria na Bateria. Só nos Jogos Jurídicos seguintes eu iria me juntar à trupe. Vi Reinaldo e outros conhecidos de classe descendo do ônibus com os instrumentos, e precisando de ajuda para carregá-los até o estádio. Fui voluntário e peguei um dos bumbos mais pesados. Não havia ningúem para tocá-lo naquele dia.
No estádio, “vesti” o bumbo, e Reinaldo me deu um curso rápido sobre a bateria:
- Seu instrumento se chama surdo de segunda. Você vai alternar com o surdo de primeira, que é o do Lauro. A Vanessa vai ficar no surdo de terceira. Outros ficam nos repiques e atabaques. Acompanha eles e aprende.
E lá fomos nós. Tocávamos mal à beça, mas a torcida gostava. Passamos aqueles jogos correndo de um estádio para outro, empolgando a massa franciscana.
O time de futebol achava que nós éramos um estorvo, evitávamos seus jogo. Mas éramos queridos pelos Dinos, o nosso time de vôlei. Não perdemos nenhum jogo deles. Até porque tínhamos um bom amigo no escrete, o Tenório.
Terminei aqueles Jogos com as mãos calejadas, quase em carne viva, e meio surdo, sem trocadilho, completamente rouco de tanto xingar as outras faculdades, especialmente a PUC.
A B.A.I.S.F. fazia ensaios semanais, que comecei a frequentar. Alguns bons amigos se formaram naquele grupo. Passei a ser referência na faculdade sobre a Bateria. Gente nova queria entrar. Outros queriam saber quando ia ter ensaio, ou se podíamos tocar em alguma festa.
Outros jogos vieram. Num deles estávamos na nossa, tocando e entoando gritos de guerra, num nervoso jogo de handebol, contra a nossa arquinimiga PUC. Ao fim do jogo, mesmo com a PUC ganhando, alguns pucanos sacaram ovos e começaram a atirá-los na nossa torcida. Muita gente estava se machucando. A arquibancada se manchava de amarelo, correria. Alguns esquentadinhos da nossa torcida partiram para a agressão contra a PUC, e a rixa estava formada.
Os ovos continuavam a voar na nossa direção. Pucanos vinham para cima querendo nos bater. Reinaldo organizou a defesa:
- Se alguém chegar perto dos instrumentos vai apanhar!
Ergui o pesado surdo acima da cabeça como um escudo para me proteger dos ovos, e empunhei a baqueta para acertar qualquer um que se aproximasse. Algumas meninas da faculdade logo se abrigaram atrás de mim e do surdo. Isso fez com que eu me sentisse um dos 300 de Esparta, a última linha de defesa contra os bárbaros. Aquelas meninas, as mulheres de nossa tribo, estavam dependendo de mim. O surdo era pesado, mas eu não podia esmorecer. Os ovos se chocavam inúteis contra o couro e o metal do meu surdo.
Fechamos posição como uma falange, nenhum inimigo ousou se aproximar.
Ao fim de batalha nos reagrupamos, estávamos todos bem. Ninguém havia se machucado e nenhum instrumento se quebrou.
No ano seguinte entra para a Bateria um mestre profissional de samba, Alexandre, que nos mostrou como tocávamos mal, e trouxe um necessário apuro técnico ao nosso som. Ele nos ensinou muita coisa, como sambas-enredo e outros ritmos.
E entre um ônibus e outro, de um estádio para outro, muitos calos, curativos e cervejas depois, acabei a faculdade em 2001, e saí da B.A.I.S.F. Era o final de três anos loucos e inesquecíveis de excursões, apresentações, gritos, batalhas, derrotas e vitórias, tudo como titular do surdo de segunda
Em 2.003 leio a notícia de que o Centro Acadêmico XI de Agosto estava fechando uma cápsula do tempo com vários souvenires dos últimos anos. Ela se chamaria Arca do Centenário, ficaria por um século enterrada na calçada do Largo de São Francisco, e seria aberta somente em 2.103. Pensei, despretensiosamente, que teria sido bom ter feito alguma coisa digna de constar na Arca.
Logo depois da Arca ter sido lacrada e sepultada no Largo, encontro por acaso com Reinaldo, o líder da B.A.I.S.F. Ele me diz:
- Luiz, você viu? Colocaram uma foto do pessoal da B.A.I.S.F. dentro da Arca.
- Sério? E nos estamos nela?
- Todo mundo está.
Aí lembrei que tinha sido até ingrato com a Bateria, quando pensei que não havia feito nada digno de constar na Arca. Eu participei da honrosa Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco, em plena passagem do milênio. Eu sou eterno. Os homens do séc. XXII vão saber dos meus feitos.
Então, crianças do futuro, vamos combinar assim. Quando vocês abrirem a Arca do Centenário, em 2.103, e virem uma foto bem desbotada de um jovem estudante de Direito, branquelo e alto, sorridente e empunhando um enorme surdo, ao lado de outros rapazes e garotas valorosos, saibam que sou eu.
E, se tudo der certo, talvez vocês olhem para o lado e vejam no meio da multidão um velhinho já bem encarquilhado, de bengala ou cadeira de rodas, do alto de seus 124 anos, cercado de netos, sorrindo e achando aquilo tudo o máximo.