Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

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Advogado, vive em São Paulo

quinta-feira, julho 31, 2008

Delenda Mendes! - Uma fábula

Samuel era um tranqüilo cidadão de Taguatinga, cidade-satélite do Distrito Federal. Ele estava confuso. Já não entendia mais nada, o mundo estava perdido. Um dia recebeu a notícia de que um banqueiro, um tal de Daniel Dantas era o novo inimigo público número um, preso que fora pela Polícia Federal. Um “grande esquema”, “verdadeira quadrilha”, gritavam as manchetes. “É isso aí, cadeia neles”, pensou.
Depois, no dia seguinte, ficou sabendo que o tal banqueiro foi soltou por um habeas corpus concedido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, o STF, o Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes.
No terceiro dia, o Daniel Dantas, já seu íntimo de noticiário, foi preso de novo.
E no quarto dia, ao invés de todos descansarem, o Gilmar Mendes soltou de novo Daniel Dantas. Como assim?
Samuel já não podia acreditar na Justiça. Todos esses bandidos soltos. Outro dia mataram um menino de 18 anos na sua rua, dívida de droga. Cadê a polícia? Cadê o Gilmar Mendes para prender aqueles pistoleiros?
Tentou esquecer o assunto por uns dias, mas era difícil. A comida descia sem gosto. O pagode não dava liga. Aí lê na revista Época a notícia que lhe dá um alento:

"A Central Única dos Trabalhadores (CUT) protocolou nesta sexta-feira (18) na Mesa Diretora do Senado um pedido de impeachment contra o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes. O secretário de comunicação da CUT, Cícero Rola, informou que o pedido foi feito porque Mendes teria cometido crime de responsabilidade ao conceder dois habeas corpus consecutivos ao banqueiro Daniel Dantas, preso na Operação Satiagraha da Polícia Federal.
´Pedimos o impeachment dele porque, a partir de agora, toda e qualquer decisão do Supremo dará margem a dúvidas para a sociedade´, disse. Ele afirmou também que a decisão de Gilmar Mendes atrapalhou as investigações da PF.”


“É isso. Eu sou um homem cioso dos meus deveres. Farei história. Eu vou pedir o impeachment do Presidente do Supremo, que nem o Barbosa Lima Sobrinho fez com o Collor”.
Com alguma dificuldade, tateando seu caminho na velha máquina de escrever, Samuel datilografou em duas horas e três páginas (com mais uma cópia de contra-fé) um pedido para que Gilmar Mendes perdesse seu cargo de Ministro, endereçado ao próprio Supremo.

***

No dia seguinte Samuel enfrenta uma viagem de condução cansativa até a Praça dos Três Poderes. Caminha pela Esplanada dos Ministérios e adentra aquela solidão, de onde saem as grandes decisões dos destinos do país.
Ele ultrapassa a estátua da Justiça, dá uma olhada para o pequeno Plenário do Supremo com esperança e desce até o primeiro dos prédios anexos. Informa-se com um segurança e descobre onde fica o Protocolo.
Chegando lá, encontra uma fila enorme. Ele espera meia hora, e apresenta seu pedido no guichê. A servidora, um tanto enfastiada, o avisa:
- Olha, aqui é o Protocolo Geral. A fila para pedido de impeachment é outra, ali, ó... – Ela aponta o corredor certo.
Samuel vai ao local indicado, e encontra uma fila ainda maior que a anterior. Nessa ele fica uma hora. Chega sua vez. Está inseguro, pede confirmação à moça desse balcão:
- Pedido de impeachment é aqui?
- É, sim. É contra o Presidente do Supremo?
- É.
- Puxa, é de fase. No mês passado foi contra o Presidente da República. Um montão de pedido...
A moça faz o protocolo. A contra-fé é devolvida com um número.
- O senhor acompanha o pedido com esse número. Tem acesso à Internet?
- Não.
- Então o senhor tem que vir aqui pessoalmente, com esse número, no Setor de Acompanhamento Processual, primeiro subsolo, toda vez que quiser saber do pedido.
- Volto semana que vêm?
A moça dá uma risada:
- Ah, não, não é tão rápido. Volte mês que vem. Fale com a Gorete, no setor que eu falei.
Samuel voltou para casa contemplando a sua contra-fé devidamente protocolizada. Era ele contra Gilmar Mendes. Mal podia esperar. Esperou pela notícia de seu pedido sair nos jornais, mas esses nada disseram. Outras notícias mais importantes tinham espaço.

***

Dito e feito, no mês seguinte Samuel estava de volta à Brasília. Já conhecendo os meandros do poder, foi direto ao Acompanhamento Processual do Supremo. Haviam três servidores concentrados em pilhas de papéis. Perguntou pelo seu contato lá:
- A Gorete está?
Uma japonesa gordinha o olhou de trás de uma das pilhas, e veio em sua direção:
- Sou eu.
- Boa tarde. Eu fiz um pedido mês passado, um impeachment.
- Certo. O senhor tem o número?
Samuel entregou o papel amarfanhado, tantas vezes examinado com orgulho por sua família e amigos. Gorete digitou algo no computador e disse:
- Está no Setor de Pessoal, terceiro subsolo do prédio II. Procure a Do Carmo.
Nossa, que pancada, pensou Samuel. Se o processo está no Setor de Pessoal é porque já devem até estar assinando a demissão do homem.
Foi ao outro prédio com o coração aos pulos. Outro setor, outros três servidores com pilhas de papéis. Só havia uma mulher, uma senhora magrinha:
- A senhora é a Do Carmo?
- Sim...
- Eu tenho um processo. O número é esse (ele já estava escolado).
Do Carmo aperta os olhos para enxergar o número e informa:
- Veja, eu recebi esse pedido semana passada. Eles estão em ordem, são muitos (aponta a pilha). Estou fazendo eles na seqüência, vai demorar um pouco.
- Quando eu volto?
- Hmmm. O senhor vai vindo de vez em quando, uma hora vai...
- Certo, obrigado.

***

E Samuel voltou mais quatro vezes no Supremo ao longo de dez meses. Sempre falando com a Do Carmo, e nada, e nada. Na quinta vez ela deu a notícia:
- O processo foi arquivado.
- Mas como? Ele já estava até aqui no Setor de Pessoal.
- Na verdade, estou me lembrando desse caso. Cuidei dele semana passada. Ele veio para cá por engano. Esses pedidos são todos arquivados logo no começo. Recebemos 70 pedidos de impeachment toda semana, nossa Constituição permite, né? Excepcionalmente, por um erro no sistema, seu processo acabou durando, mas não é normal. Sinto muito.
Samuel tentou discutir o andamento de seu processo, mas era inútil, tinha acabado.
Ele estava arrasado, de cabeça quente. Não faria história, continuaria anônimo. Gilmar Mendes continuaria Ministro do Supremo. Passou pela estátua da Justiça no caminho de volta. Ela parecia sorrir para ele com escárnio. Chutou a base com raiva. Um segurança o prendeu em flagrante por dano ao patrimônio público.
Na delegacia, Samuel sentiu um arrepio ao ver seu nome no alto da página do auto de prisão:

INDICIADO: Samuel Mendes, brasileiro, solteiro, residente e domiciliado em Taguatinga, DF...

Samuel só conseguia imaginar se o Ministro Gilmar Mendes ajudaria um xará sem parentesco com um habeas corpus.
O advogado de Samuel, eficaz como o de Daniel Dantas, protocolou sucessivos habeas corpus, em diversos Tribunais, até que o processo chegasse ao Supremo.
O relator, o Ministro Gilmar Mendes, se deu por suspeito de julgar, por razões de foro íntimo, não tinha a isenção necessária. Havia um pedido de impeachment do réu contra ele protocolado e arquivado alguns meses antes. Era um dos milhares de pedidos banais que atulharam a Justiça ao longo do ano. O pedido foi julgado por outro Ministro, que não concedeu a ordem. Samuel continuaria preso um bom tempo.

Moral da história: Não trate a Justiça com pouco caso. Ela pode fazer um grande caso de você.

segunda-feira, julho 14, 2008

O Grande Tédio e o caderno de Cultura

Domingo. Vou ao Parque Burle Marx, aqui em São Paulo. Refúgio de verde em meio ao concreto. Anseio pelo cheiro de terra molhada e mato. Antevejo os esquilos furtivos cruzando as trilhas entre um trecho de bosque e outro.
Paro o carro junto ao meio-fio, perto do parque. Junto a um poste há uma mulher em seus trinta e poucos anos, segurando uma placa de um empreendimento imobiliário. É um dos trabalhos mais cruéis e inúteis já criados pelos homens de marketing da Paulistânia. Lembro de ter visto uma dessas moças, em Santos, tombar desmaiada após horas no sol forte. Cruel. E inútil. Será que alguém compra um imóvel por causa dessas placas?
Bom, a nossa heroína, guardiã perpétua da placa (pelo menos enquanto pago lanche e condução), estava lá, ao lado do carro, com absoluta cara de enfado, segurando seu estandarte (promessa de um lar com churrasqueira na varanda).
Oba, pensei. Ela parada ali espanta os bandidos, ficando involuntariamente de olho no carro. Troco-me. Roupas de frio, uma pasta e os jornais do dia ficam no banco de trás.
Faço meu passeio. Caminho. Aproveito a hora e o sol.

***

Volto ao carro. A moça ainda estava lá de pé, aguardando. Abaixo a cabeça num aceno, sem graça, e abro a porta. Ela me diz:
- Moço, você poderia me dar...
Lá vem. Não existe almoço grátis. Ela vai querer um troco por ter olhado o carro. Achei que fosse passar sem essa. O fim de frase foi surpreendente:
- ... o caderno de cultura?
Eu fico estupefato olhando para ela e depois reparo no banco de trás do carro. Aberto, destacando-se em meio à bagunça, estava o Caderno 2 – CULTURA do Estadão. Pego de surpresa, eu consigo apenas balbuciar uma desculpa:
- Puxa, é que eu não li nada...
- Está certo, moço. É que eu fico o dia inteiro aqui, sem fazer nada.
Um pensamento egoísta me ocorre. “Poxa, mas justo o de Cultura?”. Eu nem tinha tocado no jornal ainda. Tudo é tão interessante no jornal de domingo. Mas era preciso fazer algo. Posso ficar sem as novidades de Esportes. Ela aceitaria? Não custa perguntar:
- Desculpa, é que eu nem olhei o jornal ainda. Você quer o de Esportes?
- Não, obrigado, eu só queria o Cultura mesmo. – Na mesma hora eu lembro da música: “A gente não quer só comida...”
- Moça, mal mesmo. Fica para a próxima.
Dou a partida no carro e vou para casa. Ela ficaria lá o resto do dia, sem ler nada, até ser rendida por seu capataz. Ou seria feitor?
Só mais tarde um grande arrependimento me atingiria. Por que eu não dei a porcaria do caderno de Cultura para a moça da placa? Eu leio aquilo todo domingo, não tinha muito a perder.
Para ela faria diferença. Imaginem o aborrecimento de ficar o dia inteiro de pé, de olho numa placa inanimada. Não há nem o perigo de que ela escape ou seja furtada, para agitar um pouco as coisas.
Como na prisão, qualquer coisa te distrai. As pessoas que passam. Os carros na pista. As folhas das árvores ao vento. As sombras estranhas formadas no chão. Os bichos rastejando no solo. As aves no céu. Até o conteúdo de um banco de trás de um carro ao lado. E nesse banco, um caderno de Cultura novinho, falando de TV, livros, peças de teatro e filmes.
Provavelmente a moça da placa não tem dinheiro para ir no cinema, e a resenha de um filme talvez seja o mais próximo que ela chegará de um pouco de cultura ao vivo.
Pensar nisso me angustiava. O caderno de Cultura que eu folhearia sem interesse por quinze minutos seria um dia com um pouco mais de brilho para a moça da placa. Lembrei da Lista de Schindler, filme sobre o industrial que salvou milhares de judeus do nazismo. Lamentava ele, numa das cenas finais, ao fugir ainda com algumas posses: “Com esse carro eu poderia ter salvo mais dez pessoas. Com esse anel eu poderia ter salvo mais uma...”.
Ao jogar fora o jornal, no fim do dia, lamentei:
- Ah, esse caderno de Cultura poderia ter tirado aquela moça do tédio. Esse caderno de Economia serviria de assunto no ponto para aquele taxista sem clientes. A página de Esportes talvez evitasse a soneca daquele balconista da loja às moscas, e que lhe custou o emprego.
Olhei para o lixo uma última vez, preocupado com o Grande Tédio do mundo. São as longas tardes de domingo. Escurecia. O sol descia tímido entre as casas.