Uma cena simples
Era para ser uma cena simples.
Num casarão de um subúrbio parisiense (que na verdade era uma vila locada na Espanha) um casal discute sua relação. A câmera, erguida por uma grua, entraria lentamente pela janela, invadindo a intimidade das duas pessoas, saindo de um plano geral da vizinhança para um plano fechado. Foco no rosto de uma mulher jovem, com trajes da virada do século XIX ao XX, que devia apenas dizer: “Esse trem você perdeu, François”.
Os atores estão em sua marcação. Tudo está pronto.
O diretor não é de gritar ação. Com uma aceno de cabeça ele dá a ordem para que tudo comece. Um assistente plantado na janela acena para o operador de câmera do lado de fora da casa, que conduz, com precisão cirúrgica, a enorme câmera através da abertura, sem encostar em nada. As lentes se aproximam da atriz. A frase começa a se articular em seus lábios:
- Esse trem você perdeu...
E a atriz explode numa gargalhada. A sentença perde seu complemento, François. O próprio François não ousa sair do personagem, e segue com a fala que lhe é esperada. Ela leva as mãos à cabeça, vermelha, rindo. Cobre a boca com as costas da mão direita. Seu companheiro de cena ensaia prosseguir com tudo, mas um grito os interrompe:
- Corta.
A atriz, ainda emitindo pequenos risinhos, dirige-se ao diretor:
- Desculpe, lembrei de uma coisa. Vamos tentar de novo. – Ele é todo seriedade:
- Está bem. Câmera de volta ao lugar. Dois minutos.
Após o tempo marcado, nova ordem para que tudo recomece. Todos em seus lugares. A câmera atravessa a janela e faz o close. A atriz lança a frase esperada:
- Esse trem você perdeu...
E começa a rir de novo. Da primeira vez ela até sabia porque estava rindo, mas prefere não pensar nisso. Agora ri pela lembrança de ter rido. Ri um riso imemorial. Ri tanto, até chegar ao ponto de nem lembrar mais do que estava rindo. Deviam ser aquela roupas de época apertadas, o calor espanhol, aquele diretor meio calvo e sem humor.
O companheiro de cena, desta vez, nem tenta salvar a tomada. O diretor, de cabeça baixa, apenas acena com a mão para sua equipe, que desliga tudo. A câmera na grua se encolhe e sai do casarão, como um animal ferido de volta à toca escura e úmida, com a graça de uma serpente.
O diretor volta ao seu assento. A cena não é difícil, mas se não é feita de uma vez atrasa tudo, por causa da câmera vinda da rua. O duro é que não podia falar nada para a atriz. Tratava-se de Lucille Adams, uma americana canastrona. Mas era linda e loira, com os seios mais fartos a jamais preencher a tela grande desde Jane Mansfield. Garantia de bilheteria, estrela em ascensão. O filme era apenas um veículo para que ela desfilasse em roupas da Belle Époque, com o busto farto apertado num espartilho, ofertando um decote generoso.
E ele era apenas o diretor contratado, um zé-ninguém. O roteiro não era seu, nem o dinheiro da produção. Estava ali para cumprir ordens. Mas a idéia da cena no casarão era sua, com a câmera vindo de fora.
Lucille ainda dava seus risinhos. Tinha vontade de esganá-la. Se fosse o tal a fazer o François a estragar sua cena o mandaria embora do set na base do porrete. Tinha que reconhecer que o rapaz ainda tentou manter o personagem, e não riu com ela. Só estrelas podem estragar cenas. Atores substituíveis têm mais é que ficar quietos.
Tudo pronto, avisa o operador de câmera. Lucille está séria, ao que parece. Então vai, manda o diretor.
A câmera se eleva. O casarão se aproxima. A janela é ultrapassada. O belo rosto e os seios de Lucille já despontam no horizonte. Ela tem o semblante grave, sua personagem vai dizer o que lhe atormenta há tempos:
- Esse trem você perdeu, François.
Mas antes que um atônito François responda, Lucille explode em riso novamente. Perdigotos voam na direção de François, que ensaia manter sua parte. O diretor interrompe tudo de novo. Sem ordem alguma a câmera se recolhe, veloz, roçando a cortina. A equipe se movimenta pela locação.
De sua cadeira o diretor afunda o rosto nas mãos. Lucille pede desculpas, mas não para de rir. Ele tem vontade de mandá-la ao inferno, mas isso acabaria com sua carreira. Nem sempre é o diretor que manda. Ele era apenas um técnico ali. A platéia quer ver Lucille na tela, e não ele. Seu colega Billy Wilder uma vez disse que Marilyn Monroe era uma estrela difícil de lidar, tinha que fazer a mesma cena com ela dezenas de vezes. Com sua tia húngara Billy poderia fazer a cena uma vez só, mas ninguém queria assistir a tia húngara nas telas, eles queriam Marilyn.
O diretor de fotografia se aproxima, e sussurra ao diretor:
- Se isto te consola, todo este material vai ficar ótimo nos extras do DVD, nos erros de gravação.
O diretor esfrega os olhos, se levanta. Pergunta se está tudo pronto. Pela primeira vez no dia grita ação. Agora vai. Tinham o dia inteiro. Tinham vários dias de filmagem adiante. A mesma cena de novo, e de novo, e de novo.
Não podia ser tão ruim. Pelo menos apreciaria Lucille Adams em roupas de época e espartilho, mostrando aquilo tudo.
Num casarão de um subúrbio parisiense (que na verdade era uma vila locada na Espanha) um casal discute sua relação. A câmera, erguida por uma grua, entraria lentamente pela janela, invadindo a intimidade das duas pessoas, saindo de um plano geral da vizinhança para um plano fechado. Foco no rosto de uma mulher jovem, com trajes da virada do século XIX ao XX, que devia apenas dizer: “Esse trem você perdeu, François”.
Os atores estão em sua marcação. Tudo está pronto.
O diretor não é de gritar ação. Com uma aceno de cabeça ele dá a ordem para que tudo comece. Um assistente plantado na janela acena para o operador de câmera do lado de fora da casa, que conduz, com precisão cirúrgica, a enorme câmera através da abertura, sem encostar em nada. As lentes se aproximam da atriz. A frase começa a se articular em seus lábios:
- Esse trem você perdeu...
E a atriz explode numa gargalhada. A sentença perde seu complemento, François. O próprio François não ousa sair do personagem, e segue com a fala que lhe é esperada. Ela leva as mãos à cabeça, vermelha, rindo. Cobre a boca com as costas da mão direita. Seu companheiro de cena ensaia prosseguir com tudo, mas um grito os interrompe:
- Corta.
A atriz, ainda emitindo pequenos risinhos, dirige-se ao diretor:
- Desculpe, lembrei de uma coisa. Vamos tentar de novo. – Ele é todo seriedade:
- Está bem. Câmera de volta ao lugar. Dois minutos.
Após o tempo marcado, nova ordem para que tudo recomece. Todos em seus lugares. A câmera atravessa a janela e faz o close. A atriz lança a frase esperada:
- Esse trem você perdeu...
E começa a rir de novo. Da primeira vez ela até sabia porque estava rindo, mas prefere não pensar nisso. Agora ri pela lembrança de ter rido. Ri um riso imemorial. Ri tanto, até chegar ao ponto de nem lembrar mais do que estava rindo. Deviam ser aquela roupas de época apertadas, o calor espanhol, aquele diretor meio calvo e sem humor.
O companheiro de cena, desta vez, nem tenta salvar a tomada. O diretor, de cabeça baixa, apenas acena com a mão para sua equipe, que desliga tudo. A câmera na grua se encolhe e sai do casarão, como um animal ferido de volta à toca escura e úmida, com a graça de uma serpente.
O diretor volta ao seu assento. A cena não é difícil, mas se não é feita de uma vez atrasa tudo, por causa da câmera vinda da rua. O duro é que não podia falar nada para a atriz. Tratava-se de Lucille Adams, uma americana canastrona. Mas era linda e loira, com os seios mais fartos a jamais preencher a tela grande desde Jane Mansfield. Garantia de bilheteria, estrela em ascensão. O filme era apenas um veículo para que ela desfilasse em roupas da Belle Époque, com o busto farto apertado num espartilho, ofertando um decote generoso.
E ele era apenas o diretor contratado, um zé-ninguém. O roteiro não era seu, nem o dinheiro da produção. Estava ali para cumprir ordens. Mas a idéia da cena no casarão era sua, com a câmera vindo de fora.
Lucille ainda dava seus risinhos. Tinha vontade de esganá-la. Se fosse o tal a fazer o François a estragar sua cena o mandaria embora do set na base do porrete. Tinha que reconhecer que o rapaz ainda tentou manter o personagem, e não riu com ela. Só estrelas podem estragar cenas. Atores substituíveis têm mais é que ficar quietos.
Tudo pronto, avisa o operador de câmera. Lucille está séria, ao que parece. Então vai, manda o diretor.
A câmera se eleva. O casarão se aproxima. A janela é ultrapassada. O belo rosto e os seios de Lucille já despontam no horizonte. Ela tem o semblante grave, sua personagem vai dizer o que lhe atormenta há tempos:
- Esse trem você perdeu, François.
Mas antes que um atônito François responda, Lucille explode em riso novamente. Perdigotos voam na direção de François, que ensaia manter sua parte. O diretor interrompe tudo de novo. Sem ordem alguma a câmera se recolhe, veloz, roçando a cortina. A equipe se movimenta pela locação.
De sua cadeira o diretor afunda o rosto nas mãos. Lucille pede desculpas, mas não para de rir. Ele tem vontade de mandá-la ao inferno, mas isso acabaria com sua carreira. Nem sempre é o diretor que manda. Ele era apenas um técnico ali. A platéia quer ver Lucille na tela, e não ele. Seu colega Billy Wilder uma vez disse que Marilyn Monroe era uma estrela difícil de lidar, tinha que fazer a mesma cena com ela dezenas de vezes. Com sua tia húngara Billy poderia fazer a cena uma vez só, mas ninguém queria assistir a tia húngara nas telas, eles queriam Marilyn.
O diretor de fotografia se aproxima, e sussurra ao diretor:
- Se isto te consola, todo este material vai ficar ótimo nos extras do DVD, nos erros de gravação.
O diretor esfrega os olhos, se levanta. Pergunta se está tudo pronto. Pela primeira vez no dia grita ação. Agora vai. Tinham o dia inteiro. Tinham vários dias de filmagem adiante. A mesma cena de novo, e de novo, e de novo.
Não podia ser tão ruim. Pelo menos apreciaria Lucille Adams em roupas de época e espartilho, mostrando aquilo tudo.