Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

Nome:

Advogado, vive em São Paulo

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Testemunho

- Nome?
- Edmundo Passos.
- Idade?
- 56 anos.
- Profissão?
- Sargento da PM. Aposentado.
- Natural de?
- Aqui de São Paulo mesmo.
- Aceita a presença do réu na sala na hora do testemunho?
- Vou dar uma pensada, ok?
- Está bem. Um pouco antes da hora eu pergunto de novo. Agora é só aguardar.
Edmundo cofiou o bigode branco e procurou um lugar para sentar. Estava no fórum criminal, aguardando sua vez de testemunhar num caso de assalto à mão armada que tinha visto dois anos atrás. A escrevente, auxiliar do juiz, pegou seus dados pessoais.
Naquele dia estava num posto de gasolina abastecendo seu Monza, aposentado há apenas um ano, sentindo falta de ação, como sempre. Admirava um Citroën preto parado ao lado, belo carro. Nele havia um jovem casal. O motorista não tinha mais que vinte anos, escutavam música alta, pareciam felizes. Surgidos do nada, dois animais raivosos, de cara limpa, imberbes, provavelmente drogados, apontaram suas armas para os jovens e anunciaram o assalto, com um berro. Eles desceram do carro, assustados, e os bandidos assumiram a direção, cantando pneus e arrancando do posto.
Edmundo não pôde fazer nada, já não andava armado. Não hesitaria. Passaria fogo nos dois, só cuidando de não atirar com gente na linha de tiro, e assim que saíssem do posto, para evitar uma explosão. Vagabundo tem que morrer.
Foi rápido, mas não esqueceu da cara deles. Poderia apontá-los em meio a uma multidão, um milhão de anos depois. Era bom fisionomista.
A moça chorava. O namorado, apesar de assustado, se esforçava para consolá-la. Conversou com os dois, prestando a solidariedade possível nessas horas. Foi depor na delegacia em seguida. Ajudou a fazer um retrato falado. Na mesma madrugada os dois foram presos ao tentar escapar de uma barreira policial, e bateram o carro. Menos mal, o veículo tinha seguro. Foi chamado de novo ao distrito, onde os reconheceu.
Tinha um caso completo nas mãos, e hoje ele terminava. Seria fácil. Ajudaria a tirá-los de circulação, justiça seria feita.
Circulou, ainda em busca de um assento. Havia uma sala de testemunhas. O jovem casal do Citroën estava lá, aguardando ansiosos a vez. Preferiu não sentar com eles. Não queria influências recíprocas no que iriam dizer. Edmundo ficou de pé, encostado do lado de fora. Dali podia ver uma senhora negra com semblante arrasado. Poderia ser até a mãe de um dos acusados. Azar dela. Provavelmente iria dizer que ele sempre foi um bom menino, que nunca deu trabalho. Ótimo. Mas naquela noite o bom menino pegou uma arma e podia ter matado um jovem da mesma idade que ele. À toa, por causa de um carro que ele iria vender num desmanche a preço de banana.
Passa uma fila de presos, algemados uns aos outros, de chinelos e calças bege, escoltados por policiais armados de espingardas. Eles já estão condenados, mesmo que escapem de qualquer coisa que o Estado os acuse.
Edmundo tinha ainda uma questão nas mãos. Queria ou não a presença dos acusados na sala de audiência? Foi policial, lidou várias vezes com aqueles tipos. Na ativa depôs em vários fóruns como aquele, confirmando os flagrantes, sem se importar se os réus estavam ou não na sala. Eles que viessem se meter com ele, sabia se cuidar, veriam só.
Mas agora estava aposentado. Não tinha obrigação nenhuma de se expor. Se eles tiverem comparsas ou um dia forem soltos, estaria sozinho. O Estado ou a PM não viriam ajudá-lo. Mas achava que se esconder não era coisa de homem. Já tinha enfrentado coisas muito piores, em todos os seus anos na corporação.
Observava, quieto, a arquitetura do fórum. Escutou certa vez que aquilo era para ter sido um hospital. Corredores muito amplos, pé-direito alto. De onde estava se viam os dutos de ar-condicionado. Diz a lenda que um juiz dali já pegou tuberculose ao respirar o ar infectado que circulou da carceragem para sua sala.
Queria ou não o réu na sala de audiência? Passou uma hora refletindo sobre o tema.
Ainda pensava nisso quando a escrevente veio chamá-lo. Ela perguntou de novo. Não, ele não queria o réu na sala. Iria apontá-lo através de uma fresta na porta. O fato de ter sido policial não iria ajudá-lo se as coisas piorassem. Estava sozinho nessa. A corporação não era mais parte de sua vida.
Edmundo ficou atrás da porta, esperando o momento. Apontou quem devia apontar. Ainda entrou meio envergonhado na sala, após a saída dos réus, para contar sua versão dos fatos ao juiz.