Caipiras com armas
Numa vicinal de uma rodovia principal há essa pequena cidade do interior paulista, como muitas e muitas outras. Após cruzar a rodovia e a vicinal, eu chego com minha mulher à casa de meus avós. Meu avô está mal de saúde, não pode sair da cama, mas isso não impede que minha avó nos receba com simpatia:
- Oi meninos, fizeram boa viagem?
- Ah, sim, vó.
Meio-dia. Meu avô toma uma sopa, está muito fraco. Nós sabemos o que ele tem, é grave, mas a ele foi dito que se trata de uma anemia mais forte. Tudo mudou. Trabalhava como um touro, agora vive seu outono. Lembro de algumas histórias dele. Puxo conversa. Testo para ver se a memória e as forças dele permitem resgatar algumas delas:
- Vô, o tio Natale ajudou a construir esta casa, não?
- É. Ele ajudou a trazer o material para o terreno.
E fica nisso, sem maiores detalhes. A história não era bem assim. Meu avô e seu então cunhado, irmão já falecido de minha avó, em suas juventudes, entraram num terreno de obra no meio da noite e pegaram tijolos, vigas e telhas que seus salários não permitiam pagar. E foi assim que ele construiu a casa onde ele vive até hoje, há mais de quarenta anos.
Haviam outras histórias, prestes a serem perdidas, de uma outra cidade, de um outro tempo. Ele dorme.
Após o almoço eu quero mostrar para minha mulher algumas coisas da casa e da cidade. Passo no quintal, onde pássaros se alimentam de milho jogado no chão. As jabuticabeiras e a plantação de alface, desde sempre ali. Visito a despensa. A velha espingarda, antigamente oculta com vergonha atrás da geladeira, agora é orgulhosamente exposta num suporte de ferro tosco. Empunho a arma, mais assustadora que sua carga de chumbinho permitiria ser. Cano de metal preto e comprido e empunhadura marrom .
Meu avô me ensinou a atirar nesta arma, a pescar e a fazer churrasco, coisas de galo macho. De tudo isso, só o conhecimento de pescar ainda é aproveitável. Não sei mais preparar carne, e não sei atirar em nada do arsenal moderno. Ninguém mais empunha aquelas espingardas.
Tudo muito fácil. Dobra-se o cano da arma até embaixo, até ela travar. Coloca-se o chumbo. O cano volta à posição original a fim encaixar de novo, com um clique. Lembro de pegar aquela arma uma vez, de enrolá-la num lençol branco e levá-la à casa de uma amigo, para uma competição particular de tiro. Andamos pela cidade nos achando o máximo, como dois patrulheiros. Atirava em alvos inanimados, nunca matei uma ave ou qualquer outro bicho com ela.
Empunho a espingarda. Digo à minha mulher:
- Querida, aqui é o cinturão da Bíblia. Todo mundo tem arma em casa. Minha avó usava essa espingarda para espantar os pedintes e vagabundos da frente de casa, quando ela ficava sozinha.
Quero testar minha mira. Há uma carcaça metálica de máquina de lavar no quintal, um bom alvo. Pergunto pela munição à minha avô, que responde sem ânimo:
- Ah, atire mais tarde. Vai espantar todos os meus pássaros.
A arma volta ao suporte.
Levo minha mulher para uma volta. A praça em frente à matriz, tantas vezes modificada, agora ostenta uma fonte. Até o próximo prefeito resolver fazer um coreto ou uma estátua. Há quiosques de lanches. E pensar que antigamente os únicos chapeiros da cidade resolveram abolir os hot-dogs para que a concorrência mútua não os destruísse.
Meu primo está lá perto, em frente a um de seus bares. Ele tem caça-níqueis e bocha à dinheiro no fundo, mas a polícia não o incomoda.
Há uma ligação entre a praça e a rua do comércio. Um túnel curto sob as linhas de trem. Quando eu tinha um metro e trinta ele parecia escuro e sempre cheirava à urina, não me arriscava lá. Tinha medo dos drogados, que ainda devem ficar por lá de madrugada.
Na rua do comércio está tudo fechado, mas há movimento perto da Prefeitura. Um carro da polícia passa com as sirenes ligadas. Andamos. Populares se aglomeram, cochicham. Pergunto a um deles o que está acontecendo, ele responde:
-Estão assaltando o correio. Há reféns.
Volto para casa em silêncio. Conto sobre o assalto para minha avó. Ela tinha ouvido algo da vizinha, que achava que era um assalto a banco. Comento:
- Nossa, até aqui está essa violência, não?
- Ah, é gente de fora. E eles estão se matando também. Matam só para ouvir o barulho. Caipiras com armas. Eles bebem e saem por aí, de caminhonete. De noite é só barbaridade. Gente dando tiro. E tem os drogados, os maconheiros. Naquele bairro depois da rodovia é uma peãozada nova, gente que veio trabalhar nas fábricas. É só confusão ali.
Em seu quarto, meu avô dormia, alheio a essas novidades. Nem ele nem minha avó dariam conta do que acontece hoje. Tudo politicamente correto e emocionante. Bandidos com indulto visitam a cidade de fim de semana.. Acabou o sossego, mas também acabou o tédio. Escuto atrás do muro passos no vizinho e uma conversa:
- Oi gordo, você viu, sô? Estão assaltando o banco lá na praça.
Novos tempos. A espingarda não serviria para nada. Melhor que ela fique na parede mesmo, enferrujando, sem espantar os passarinhos.
Minha mulher, típica pomba urbana, não se assustou com nada. Achou a cidade e todos muito simpáticos. Eu, que tinha visto certa vez um lugar bem diferente, fiquei um tempo largado na rede pensando em tudo, com a impressão de que tinha envelhecido rápido demais, com um saudosismo bobo que nem meu avó doente teria.
- Oi meninos, fizeram boa viagem?
- Ah, sim, vó.
Meio-dia. Meu avô toma uma sopa, está muito fraco. Nós sabemos o que ele tem, é grave, mas a ele foi dito que se trata de uma anemia mais forte. Tudo mudou. Trabalhava como um touro, agora vive seu outono. Lembro de algumas histórias dele. Puxo conversa. Testo para ver se a memória e as forças dele permitem resgatar algumas delas:
- Vô, o tio Natale ajudou a construir esta casa, não?
- É. Ele ajudou a trazer o material para o terreno.
E fica nisso, sem maiores detalhes. A história não era bem assim. Meu avô e seu então cunhado, irmão já falecido de minha avó, em suas juventudes, entraram num terreno de obra no meio da noite e pegaram tijolos, vigas e telhas que seus salários não permitiam pagar. E foi assim que ele construiu a casa onde ele vive até hoje, há mais de quarenta anos.
Haviam outras histórias, prestes a serem perdidas, de uma outra cidade, de um outro tempo. Ele dorme.
Após o almoço eu quero mostrar para minha mulher algumas coisas da casa e da cidade. Passo no quintal, onde pássaros se alimentam de milho jogado no chão. As jabuticabeiras e a plantação de alface, desde sempre ali. Visito a despensa. A velha espingarda, antigamente oculta com vergonha atrás da geladeira, agora é orgulhosamente exposta num suporte de ferro tosco. Empunho a arma, mais assustadora que sua carga de chumbinho permitiria ser. Cano de metal preto e comprido e empunhadura marrom .
Meu avô me ensinou a atirar nesta arma, a pescar e a fazer churrasco, coisas de galo macho. De tudo isso, só o conhecimento de pescar ainda é aproveitável. Não sei mais preparar carne, e não sei atirar em nada do arsenal moderno. Ninguém mais empunha aquelas espingardas.
Tudo muito fácil. Dobra-se o cano da arma até embaixo, até ela travar. Coloca-se o chumbo. O cano volta à posição original a fim encaixar de novo, com um clique. Lembro de pegar aquela arma uma vez, de enrolá-la num lençol branco e levá-la à casa de uma amigo, para uma competição particular de tiro. Andamos pela cidade nos achando o máximo, como dois patrulheiros. Atirava em alvos inanimados, nunca matei uma ave ou qualquer outro bicho com ela.
Empunho a espingarda. Digo à minha mulher:
- Querida, aqui é o cinturão da Bíblia. Todo mundo tem arma em casa. Minha avó usava essa espingarda para espantar os pedintes e vagabundos da frente de casa, quando ela ficava sozinha.
Quero testar minha mira. Há uma carcaça metálica de máquina de lavar no quintal, um bom alvo. Pergunto pela munição à minha avô, que responde sem ânimo:
- Ah, atire mais tarde. Vai espantar todos os meus pássaros.
A arma volta ao suporte.
Levo minha mulher para uma volta. A praça em frente à matriz, tantas vezes modificada, agora ostenta uma fonte. Até o próximo prefeito resolver fazer um coreto ou uma estátua. Há quiosques de lanches. E pensar que antigamente os únicos chapeiros da cidade resolveram abolir os hot-dogs para que a concorrência mútua não os destruísse.
Meu primo está lá perto, em frente a um de seus bares. Ele tem caça-níqueis e bocha à dinheiro no fundo, mas a polícia não o incomoda.
Há uma ligação entre a praça e a rua do comércio. Um túnel curto sob as linhas de trem. Quando eu tinha um metro e trinta ele parecia escuro e sempre cheirava à urina, não me arriscava lá. Tinha medo dos drogados, que ainda devem ficar por lá de madrugada.
Na rua do comércio está tudo fechado, mas há movimento perto da Prefeitura. Um carro da polícia passa com as sirenes ligadas. Andamos. Populares se aglomeram, cochicham. Pergunto a um deles o que está acontecendo, ele responde:
-Estão assaltando o correio. Há reféns.
Volto para casa em silêncio. Conto sobre o assalto para minha avó. Ela tinha ouvido algo da vizinha, que achava que era um assalto a banco. Comento:
- Nossa, até aqui está essa violência, não?
- Ah, é gente de fora. E eles estão se matando também. Matam só para ouvir o barulho. Caipiras com armas. Eles bebem e saem por aí, de caminhonete. De noite é só barbaridade. Gente dando tiro. E tem os drogados, os maconheiros. Naquele bairro depois da rodovia é uma peãozada nova, gente que veio trabalhar nas fábricas. É só confusão ali.
Em seu quarto, meu avô dormia, alheio a essas novidades. Nem ele nem minha avó dariam conta do que acontece hoje. Tudo politicamente correto e emocionante. Bandidos com indulto visitam a cidade de fim de semana.. Acabou o sossego, mas também acabou o tédio. Escuto atrás do muro passos no vizinho e uma conversa:
- Oi gordo, você viu, sô? Estão assaltando o banco lá na praça.
Novos tempos. A espingarda não serviria para nada. Melhor que ela fique na parede mesmo, enferrujando, sem espantar os passarinhos.
Minha mulher, típica pomba urbana, não se assustou com nada. Achou a cidade e todos muito simpáticos. Eu, que tinha visto certa vez um lugar bem diferente, fiquei um tempo largado na rede pensando em tudo, com a impressão de que tinha envelhecido rápido demais, com um saudosismo bobo que nem meu avó doente teria.
4 Comments:
Gu,
Essa história foi linda, me emocionou muito!!!!
Fe
Obrigado, obrigado!!!
Porra Gutão!!
Que bacana..... fez lembrar a minha São Manuel.... Abraços!! Rafael Campos
Valeu, Rafa!
Postar um comentário
<< Home