Muitas vidas em uma só
Emanuel é estudante de teatro. Deixou o Rio, onde só resta ao ator fazer novela na Globo, e foi fazer seu curso de interpretação no que considera ser a terra do principais palcos nacionais, São Paulo. Divide um quarto e sala com mais três universitários sem dinheiro.
Hoje é seu grande dia. Ele tem um teste marcado para um papel numa montagem moderninha de “Testemunha de Acusação”, peça da inglesa best-seller Agatha Christie, tudo a cargo de um diretor famoso. Um ótimo drama de tribunal.
No metrô, Emanuel consegue um lugar para sentar. Quinze minutos até a Avenida Paulista. Ele sonha.
“Agora é o começo”. Um bom papel para deslanchar de vez. Quem sabe o acusado? Ou o advogado de defesa. Imaginem só. Ele de pé, falando aos jurados, coberto com sua beca. A mão vibrou com a fúria da justiça sendo feita, o júri hipnotizado aos seus pés. Tinha o roteiro da peça nas mãos, e um outro livro, “A Preparacao do Ator”, clássico do russo Constantin Stanislavski.
Folheou o script. E se fosse o juiz? O texto dizia:
“JUIZ: (Após verificar o documento.) Acredito, Sir Wilfrid, que a testemunha tem a devida competência para falar nesta Corte“.
Há uma morena bonita de pé na sua frente. Emanuel larga o roteiro e empunha o “Preparação”, que chama mais atenção por ter a palavra “ator” no título do que a brochura amarelada e cheia de orelhas da peça. O livro diz o que ele é, um ator em preparo. Ela o olha. Com certeza ela a imaginar o cotidiano interessante dele. A cada dia com uma vida diversa. Como o ator que Ben Affleck viveu no filme Shakespeare Apaixonado, ele, no futuro teria um rol de muitos papéis, e seria conhecido por muitos nomes. Entraria no palco, como Ben, e proclamaria: “Eu sou Hamlet. Eu sou Romeu. Eu sou Falstaff.” Ou algo assim.
Estava na carreira certa, era atraente e magro, tinha tudo para se dar bem. Talvez possa começar sua trajetória como um jovem galã, sempre fazendo papel de mocinho. Beijando tudo quanto é colega bonita. Conforme passasse o tempo poderia interpretar jovens pais ou esposos. Sempre do bem. O genro perfeito. O empregado que todos os patrões querem.
Até que um dia surpreenderia a todos com um papel de vilão num filme. Um daqueles bem ruins. Um psicopata, algo assustador. A crítica seria unânime. Ganharia prêmios. Quem sabe um Oscar? Finalmente um brasileiro chegaria lá.
A moça desce do vagão, ele ainda tem mais algumas estações. Emanuel acha que ela o olhou antes de sair. Ah, garoto...
Leu os trechos mais importantes do Stanislavski umas duas vezes antes de dormir na noite anterior. Decorou trechos dos papéis do juiz, do advogado de defesa e do acusado. Ensaiou a respiração, a entonação, o gestual, a dicção, a voz. Balançou as mãos, até que elas ficassem naturais. Mirou-se no espelho até controlar o olhar. Alongou-se. Mal podia esperar para mostrar o que sabia ao diretor de elenco.
Estação Trianon. É aqui. É agora. Desceu do trem. Respirou fundo.
***
As coisas não se saíram como Emanuel esperava. Dezenas de candidatos como ele disputavam os papéis principais. Teve trinta segundos para a leitura do papel de juiz, outros vinte para o acusado, e só dez para o advogado de defesa. Nenhum dos papéis seria seu. O diretor de elenco o expulsou aos berros do palco, pedindo o próximo candidato.
Um péssimo começo, pensava o jovem, decepcionado. Fica para uma outra vez. Emanuel arrumava seus livros quando uma moça o chamou. Era a assistente do diretor de elenco:
- Moço, é o seguinte. O diretor quer você para um papel.
- Qual?
Um dos meirinhos, um oficial de justiça. Simples. Ele não tem falas, só fica parado perto do juiz, na cena do tribunal. O diretor quer uma pessoa que não chame muita atenção, com um rosto comum, magro como você. Você topa?
Emanuel topou. Ele começaria na semana que vem. Apesar de ser um papel simples, ele tinha que ir em todos os ensaios, lógico, e ainda daria uma força na contra-regra e trazendo água para o elenco principal, esse tipo de coisa. Pagava uma miséria.
Qualquer um se desanimaria. Mas não Emanuel. Ele seria o melhor meirinho que os teatros paulistas já viram. Ficaria parado ao lado do juiz, um dos papéis principais, o tempo todo. O juiz ocupa o centro do tribunal, e ele estaria ali. O papel exigia que ele passasse despercebido, mas isso não seria fácil, por ser alguém que chama a atenção. Muitos lembrariam de sua estréia, seria histórica, eles iriam ver só.
Um meirinho, com seu uniforme da corte, perfeitamente engomado, os cabelos bem escovados para trás, muito digno. Um representante da Justiça inglesa e da própria Rainha.
E seria a primeira de muitas vidas que Emanuel queria viver. Muitas vidas em uma só. Só um ator poderia fazer isso. Um dia lembraria de seu começo e daria risada. Celebrou em silêncio seu sucesso, emocionado, enquanto pegava o trem de volta.
Hoje é seu grande dia. Ele tem um teste marcado para um papel numa montagem moderninha de “Testemunha de Acusação”, peça da inglesa best-seller Agatha Christie, tudo a cargo de um diretor famoso. Um ótimo drama de tribunal.
No metrô, Emanuel consegue um lugar para sentar. Quinze minutos até a Avenida Paulista. Ele sonha.
“Agora é o começo”. Um bom papel para deslanchar de vez. Quem sabe o acusado? Ou o advogado de defesa. Imaginem só. Ele de pé, falando aos jurados, coberto com sua beca. A mão vibrou com a fúria da justiça sendo feita, o júri hipnotizado aos seus pés. Tinha o roteiro da peça nas mãos, e um outro livro, “A Preparacao do Ator”, clássico do russo Constantin Stanislavski.
Folheou o script. E se fosse o juiz? O texto dizia:
“JUIZ: (Após verificar o documento.) Acredito, Sir Wilfrid, que a testemunha tem a devida competência para falar nesta Corte“.
Há uma morena bonita de pé na sua frente. Emanuel larga o roteiro e empunha o “Preparação”, que chama mais atenção por ter a palavra “ator” no título do que a brochura amarelada e cheia de orelhas da peça. O livro diz o que ele é, um ator em preparo. Ela o olha. Com certeza ela a imaginar o cotidiano interessante dele. A cada dia com uma vida diversa. Como o ator que Ben Affleck viveu no filme Shakespeare Apaixonado, ele, no futuro teria um rol de muitos papéis, e seria conhecido por muitos nomes. Entraria no palco, como Ben, e proclamaria: “Eu sou Hamlet. Eu sou Romeu. Eu sou Falstaff.” Ou algo assim.
Estava na carreira certa, era atraente e magro, tinha tudo para se dar bem. Talvez possa começar sua trajetória como um jovem galã, sempre fazendo papel de mocinho. Beijando tudo quanto é colega bonita. Conforme passasse o tempo poderia interpretar jovens pais ou esposos. Sempre do bem. O genro perfeito. O empregado que todos os patrões querem.
Até que um dia surpreenderia a todos com um papel de vilão num filme. Um daqueles bem ruins. Um psicopata, algo assustador. A crítica seria unânime. Ganharia prêmios. Quem sabe um Oscar? Finalmente um brasileiro chegaria lá.
A moça desce do vagão, ele ainda tem mais algumas estações. Emanuel acha que ela o olhou antes de sair. Ah, garoto...
Leu os trechos mais importantes do Stanislavski umas duas vezes antes de dormir na noite anterior. Decorou trechos dos papéis do juiz, do advogado de defesa e do acusado. Ensaiou a respiração, a entonação, o gestual, a dicção, a voz. Balançou as mãos, até que elas ficassem naturais. Mirou-se no espelho até controlar o olhar. Alongou-se. Mal podia esperar para mostrar o que sabia ao diretor de elenco.
Estação Trianon. É aqui. É agora. Desceu do trem. Respirou fundo.
***
As coisas não se saíram como Emanuel esperava. Dezenas de candidatos como ele disputavam os papéis principais. Teve trinta segundos para a leitura do papel de juiz, outros vinte para o acusado, e só dez para o advogado de defesa. Nenhum dos papéis seria seu. O diretor de elenco o expulsou aos berros do palco, pedindo o próximo candidato.
Um péssimo começo, pensava o jovem, decepcionado. Fica para uma outra vez. Emanuel arrumava seus livros quando uma moça o chamou. Era a assistente do diretor de elenco:
- Moço, é o seguinte. O diretor quer você para um papel.
- Qual?
Um dos meirinhos, um oficial de justiça. Simples. Ele não tem falas, só fica parado perto do juiz, na cena do tribunal. O diretor quer uma pessoa que não chame muita atenção, com um rosto comum, magro como você. Você topa?
Emanuel topou. Ele começaria na semana que vem. Apesar de ser um papel simples, ele tinha que ir em todos os ensaios, lógico, e ainda daria uma força na contra-regra e trazendo água para o elenco principal, esse tipo de coisa. Pagava uma miséria.
Qualquer um se desanimaria. Mas não Emanuel. Ele seria o melhor meirinho que os teatros paulistas já viram. Ficaria parado ao lado do juiz, um dos papéis principais, o tempo todo. O juiz ocupa o centro do tribunal, e ele estaria ali. O papel exigia que ele passasse despercebido, mas isso não seria fácil, por ser alguém que chama a atenção. Muitos lembrariam de sua estréia, seria histórica, eles iriam ver só.
Um meirinho, com seu uniforme da corte, perfeitamente engomado, os cabelos bem escovados para trás, muito digno. Um representante da Justiça inglesa e da própria Rainha.
E seria a primeira de muitas vidas que Emanuel queria viver. Muitas vidas em uma só. Só um ator poderia fazer isso. Um dia lembraria de seu começo e daria risada. Celebrou em silêncio seu sucesso, emocionado, enquanto pegava o trem de volta.
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