Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

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Advogado, vive em São Paulo

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Blitz

Um dia eu embarquei no metrô de Londres, Inglaterra. Chamam ele de Tube, o Tubo. Achei um espaço para sentar. A cada parada uma voz metálica e automática anunciava a estação seguinte e o destino final. Numa das estações entra uma velhinha estilo vovozinha, cabelo branco arrumado num coque, roupas fora de moda, meio carrancuda. Ela traz uma bengala e quase me acerta com ela na cabeça, exigindo meu lugar.
Ela foi mais rápida que minha educação. Eu prontamente levanto. Ela senta, sem agradecer, com um ar de quem lamenta essa juventude mal-educada de hoje, e uma interjeição de desprezo, oh Lord!
Passo a imaginar. Vou chamá-la de miss Suzy. Ela era jovem durante a Segunda Guerra Mundial. Provavelmente vivia em Londres mesmo. Deve ter se escondido das bombas e foguetes alemães. Ouviu as sirenes ecoarem de madrugada, o coração batendo forte de pavor. Sempre aquele cheiro de fumaça e o calor do fogo próximo. Guardava cupons de racionamento.
Miss Suzy comia mal, vivia mal. Talvez tenha perdido um irmão ou o próprio marido no front. Pode até mancar e usar bengala por ter recebido um estilhaço ou bala perdida na perna. Viu corpos e rostos mutilados largados na rua. Ratos do tamanho de cachorros arrastando cadáveres nas ruas bombardeadas. Edifícios transformados em esculturas de ferro e concreto retorcido. Ribombar constante na distância.
A Blitz é a grande obsessão inglesa. Eles nunca vão esquecer, a lembrança passará de pai para filho pela eternidade.
Nossa personagem, miss Suzy, pode ser uma mulher que viu muito coisa. Estou apenas imaginando.Vive sua vida, às turras apenas com os jovens como eu, sem receber muita atenção do governo ou dos outros.
Mas há gente preocupada com ela. Os diretores do metrô.
Um museu londrino quer anunciar uma exposição de quadros de Lucas Cranach, mestre renascentista alemão. Prepara um cartaz com uma de suas obras, um nu feminino que retrata a deusa da beleza Vênus. Mas o material publicitário não vai ser exposto no metrô de Londres. Os responsáveis, sempre eles, acharam que o quadro poderia ferir alguma suscetibilidade. Uma mulher pelada daquelas poderia ofender miss Suzy.
Lucas Cranach viveu entre 1.472 e 1.553. Ao pintar o quadro, deve ter se preocupado no máximo com a sensibilidade de algum padre ou bispo. Mas parece que não os incomodou a este ponto. Viveu quase 82 anos, pintando seus quadros e criando. Se tivesse sido tão incômodo não teria durado muito, nem sua arte.
Muitas das obras de Cranach são mais velhas que o descobrimento da América. O mundo rodou muito desde então. Sequer poderia o mestre imaginar que ele seria censurado cinco séculos depois. Justo ele, justo sua Vênus.
O que o Metrô de Londres fez foi uma piada de mal gosto. Gente ignorante! Botocudos! Boçais!
Dirigentes do Tube, não se preocupem com miss Suzy. Garanto que ela já viu coisa muito pior. Não vai se chocar com uma pintura velha de quinhentos anos de uma deusa nua. Ela sabe se defender e não carrega bengala à toa. A Blitz foi a coisa mais obscena que ela já viu e jamais verá pelo resto de seus dias. Exceto, talvez, esse desrespeito à arte.