A confiança é uma das bases da vida em sociedade. É através dela que estabelecemos as relações de amizade e as amorosas. É no confiar que empresas são abertas e ações destas são compradas por investidores. Acreditar nos outros nos faz consumidores. O trânsito só flui porque há uma crença de que os outros motoristas respeitarão o sinal vermelho. Embarcamos em trens e aviões contando que nada venha na contramão.
Resolvi então lembrar de três histórias de amor, em que a confiança (ou melhor, a falta dela) levam a desfechos trágicos.
A primeira é Lohengrin, ópera de Richard Wagner, que tive duas ocasiões de assistir. Uma em montagem no Teatro Municipal de São Paulo, em 2004, em regência de Ira Levin. Outra no DVD da apresentação na Ópera de Viena em 1990, com Plácido Domingo no papel principal.
Essa ópera narra a história, passada no século X, em Antuérpia, de Elsa, filha do falecido duque de Brabante. A região está em caos desde a morte do duque, e ameaça de invasão dos húngaros faz o rei alemão Henrique ir até lá a fim de reunir um exército de defesa. O jovem irmão de Elsa, Gottfried, está misteriosamente desaparecido.
Com a chegada do rei, o conde Telramund, incitado por sua esposa Ortrud, acusa Elsa de ter assassinado Gottfried a fim de governar Brabante ao lado de um amante desconhecido.
Diante da acusação, é decidido que a questão será resolvida por uma ordália, um juízo de Deus, uma forma de julgamento em que a razão estará com o vencedor de um combate. Telramund lutará com um defensor de Elsa. Esta diz que aguarda a chegada de um cavaleiro em brilhante armadura enviado por Deus.
Eis que, vindo do rio, surge num bote puxado por um cisne um cavaleiro, completamente armado. Este se dispõe a lutar por Elsa e a casar com ela, desde que ela nunca lhe pergunte seu nome ou origem. Ela concorda, e o cavaleiro vence Telramund e lhe poupa a vida.
Elsa e o cavaleiro se casam. Mas o banido Telramund e sua esposa continuam a fomentar intrigas e aos poucos instalam a dúvida no coração de Elsa. Esta vive plena felicidade ao lado do cavaleiro, que, lembremos, duraria enquanto esta nunca perguntasse seu nome e origem. Em seu leito nupcial, sendo a curiosidade feminina universal, e envenenada pelas fofocas de Ortrud, pergunta ao cavaleiro qual seu nome e origem. Nesse momento são atacados por Telramund. O cavaleiro se defende e mata o conde.
O corpo do conde é levado diante do rei.. O cavaleiro, arrasado, responde às perguntas de Elsa diante de todos. Diz ser Lohengrin, filho de Parsifal, e é um dos cavaleiros que defende o Graal. Vem do castelo de Montsalvat, e perde seus poderes quando é forçado a revelar sua identidade. O cisne reaparece no rio. A ave é na verdade o desaparecido Gottfried. Lohengrin parte para sempre e Elsa morre de desgosto.
A segunda história é a lenda bíblica da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, narrada no livro do Gênesis. Lot, um virtuoso homem que vivia em Sodoma, e sua família, seriam os únicos poupados da destruição das duas cidades, que muito desgosto causavam ao Deus dos Exércitos, por serem antros de pecado e injustiça.
Dois anjos enviados por Deus avisam Lot. Este deveria, com sua mulher e suas duas filhas, sair da cidade, em direção a um monte seguro. Os anjos ainda advertem que estes, na fuga, não deveriam olhar para trás, nem parar na planície entre Sodoma e o monte.
Eis que Deus faz chover fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra, e tudo e todos nestas cidades são destruídos. Na fuga, a mulher de Lot não se agüenta de curiosidade (mulheres!) e olha para trás. É transformada numa estátua de sal.
A terceira história é a célebre lenda de Orfeu, que assisti também no Municipal, em montagem da ópera de Claudio Monteverdi.
A história se passa na Grécia, na Antigüidade. Orfeu, talentoso cantor e músico, é um semideus filho de Apolo e de Calíope, a mais importante das musas. Ele se casa com Eurídice e vive um romance ideal. Sua felicidade acaba quando sua mulher vem a morrer, mordida por uma serpente.
Desolado e movido pela morte de sua amada, Orfeu desce até os portões do Hades, o Inferno, acompanhado somente da sua voz e da Esperança. Esta não pode passar dos portões, em citação à obra de Dante Alighieri (“Lasciate ogni speranza o voi ch´entrate" - Abandonai toda esperança, ó vós que entrais).
Para entrar no Hades, Orfeu deve dobrar a resistência de Caronte, o barqueiro sombrio, que conduz as almas ao Tártaro. Este não deixará Orfeu passar, pois só mortos podem seguir adiante. Com sua voz maviosa, Orfeu faz Caronte adormecer, ocasião em que se apodera do barco.
Orfeu deverá ainda convencer Plutão (não o ex-planeta), o deus senhor do Hades, a devolver-lhe sua amada. Sua música convence também a divindade, na condição que Orfeu, enquanto não deixasse o território infernal com Eurídice, não olhasse para a amada, sob pena de perdê-la para sempre.
Desconfiado de que não era sua amada quem conduzia ou que as Fúrias a estivessem raptando, Orfeu não resiste e olha para Eurídice, que vinha puxando pelo braço. A curiosidade custará caro. Em castigo deverá deixar o Hades sem ela.
De volta ao mundo dos vivos, Orfeu segue amargurado até ser dilacerado pelas bacantes, por se recusar a amar outras mulheres. Na ópera esse final trágico é atenuado, pois na peça ele é conduzido aos céus por seu pai Apolo.
As três histórias tem um comum o fato da confiança ser exigida por um deus, e de ser a pessoa amada a pessoa a quebrá-la. Em Lohengrin e na história de Lot, quem a pede é o deus cristão, através de avatares (um cavaleiro e dois anjos, respectivamente). No caso de Orfeu, é o senhor dos infernos que a pede, e, para horror de alguns, até este pode ser confiável, ao contrário dos sempre ardilosos mefistófeles da Literatura. Hades aqui cumpre o que promete.
Essas histórias mostram que, no terreno do amor, a confiança na pessoa amada é muito importante. Às vezes não precisamos saber da origem ou classe social da pessoa, e o nome pode ser até desnecessário. Não precisamos ver o mal e os amores antigos que deixamos para trás ao iniciar uma nova história com quem amamos. E podemos até seguir passos à frente, mesmo separados por algum tempo, confiando que a pessoa amada ainda estará junto de nós.
Outra moral das histórias é que a curiosidade nem sempre é uma coisa boa. Aqui com uma ligeira predominância da curiosidade feminina.