Resenhas tardias: Anti-Herói Americano
À primeira vista a história de Harvey Pekar, um americano típico, casado, arquivista de um hospital na cidade de Cleveland, no estado de Ohio, não atrairia muito interesse. Era o mero drama de um homem comum rumo à meia-idade. A ação em sua vida era se divorciar, viver cada vez mais sozinho num apartamento repleto de discos de jazz, ter problemas de dinheiro, e estar à beira da depressão.
Mas essa história aparentemente banal se tornou um longa-metragem, estrelado por Paul Giamatti (o homem depressivo por excelência). A razão foi a obra criada por Pekar, as histórias em quadrinhos da revista American Splendor (que, aliás, é o nome original do filme).
Tudo se deveu à amizade de Pekar com o lendário cartunista Robert Crumb, criador do gato Fritz e de Mr. Natural. Crumb, ao morar um tempo em Cleveland durante sua juventude, veio a conhecer um colecionador de discos e entusiasta de jazz, justamente Harvey. Ficaram amigos, os anos passaram, e os quadrinhos de Crumb se tornaram um grande sucesso, a ponto de se tornar um dos símbolos do underground americano.
Harvey, enquanto isso, apenas gastava seus dias no arquivo do hospital. Divorciou-se, e o tempo o tornava mais e mais casmurro e isolado. Gastava todo seu dinheiro em discos de jazz, que ocupavam todos os espaços de seu lar. Certo dia, apanhou uma pasta do arquivo de um paciente morto. O homem tinha sido arquivista, como ele. Um desconhecido. A vida dele passara, sem deixar marcas.
Isso abalou Harvey, que resolveu fazer algo mais que ser um mero funcionário subalterno num hospital. Ele começou a escrever roteiros de histórias em quadrinhos. Rascunhava as tramas e os esboços em papel e utilizava bonecos de palito para visualizar suas idéias. Tinha um plano. Usaria o dinheiro que gastava em discos para financiar a publicação. Havia um porém, não sabia desenhar.
Mas isso não era problema para quem era amigo de um desenhista consagrado. De tempos em tempos , Crumb visitava Cleveland e revia a velha patota. Numa dessas ocasiões, Harvey mostrou suas histórias ao cartunista, que se interessou pelo material. Logo surgia a revista American Splendor, que seria ilustrada por diversos artistas, “convencidos” por Harvey a trabalharem para ele. Até hoje, é a única parceria de Crumb com outro roteirista, já que o cartunista elaborava suas próprias tramas.
Diferente de outros quadrinhos, American Splendor não tratava de super-heróis ou alienígenas. Também não era como as histórias de Crumb, que tinham animais falantes ou nonsense, com um pé no fantasioso. Harvey tratava simplesmente da sua vida, a história de um homem médio, às voltas com velhas judias que travavam a fila do supermercado e office-boys que buscavam um extra vendendo discos usados. Os pequenos dramas, desejos e frustrações dos habitantes de Cleveland, uma cidade sem glamour e pouco citada no imaginário americano.
Pekar fez sucesso com suas tramas. Uma dona de loja de quadrinhos de outro estado, Joyce, fã de seu trabalho, começou a se corresponder com Harvey. Logo ela estaria largando sua cidade e se mudando para Cleveland. Estão casados até hoje.
As histórias de Pekar também atraíram a mídia, que logo se interessou pela história do arquivista que roteirizava quadrinhos nas horas vagas. Até peças de teatro foram montadas tendo por base American Splendor, uma delas estrelada por Dan Castellaneta, a voz original de Homer Simpson, do longevo seriado Os Simpsons. A MTV descobriu os amigos bizarros e nerds de Harvey e os expôs em esquetes.
Harvey passou a ser convidado regular do programa do entrevistador Dave Letterman. Mas o relativo sucesso não permitia que Harvey largasse seu trabalho no hospital. Em sua neura e rabugice, passou a desdenhar da atenção recebida, chegando ao ponto de ser uma das poucas pessoas que irritaram o sempre bonachão Dave. Uma das conturbadas visitas de Harvey ao Late Show, de 1988, pode ser vista no site YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=iBr4NxujLvw). Dave acabaria por banir Harvey de seu programa.
O filme tem interessantes inserções de animação, como no trecho em que Joyce está para conhecer Harvey, que só conhece dos quadrinhos, e tem dúvidas sobre sua aparência. De acordo com uma concepção artística, Harvey podia ter a aparência de um jovem Marlon Brando. Na visão de outro desenhista, podia ser um gorila peludo.
Até mesmo dramas pesados de Harvey, como a sua luta contra um câncer, virou história em quadrinhos. Our Cancer Year trata de sua dolorosa experiência, e foi uma graphic novel bastante premiada.
A Conrad, que lança no Brasil a obra de Crumb e Neil Gaiman (adoro essa editora!) tem em seu catálogo o livro Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos (American Splendor presents Bob & Harv´s Comics), compilando algumas histórias de Pekar que Crumb desenhou. Como sempre digo, esse livro é encontrado nas melhores casas do ramo, não ganhei nada com isso.
Achei o filme interessante. Confesso que assisti porque era a história de um amigo de Robert Crumb, de quem sou fã. Mas a história de Harvey Pekar tem brilho próprio. Seu sucesso tem razão de ser. Diferentemente de outras ficções, em que o leitor muitas vezes é atirado em mundos de fantasia, onde pessoas voam e usam a cueca por cima da calça, Pekar usou os quadrinhos para mostrar a vida real, e isso era uma novidade neste meio. Qualquer um podia se identificar com suas histórias, e não precisava mais ler os jornais ou um romance para isso, e sim letras em balões e desenhos.
Aliás, está mais que na hora dos quadrinhos terem o seu status de arte reconhecido, já que alguns grandes criadores, como Will Eisner, e os já citados Gaiman, Pekar e Crumb, escolheram essa mídia para dar vazão às suas imaginações. Assistir esse filme pode colaborar para tanto.
Ficha Técnica - Anti-Herói Americano (American Splendor, EUA/2003, 101 min. Comédia dramática. Dir. Shari Springer Berman e Robert Pulcini)
Mas essa história aparentemente banal se tornou um longa-metragem, estrelado por Paul Giamatti (o homem depressivo por excelência). A razão foi a obra criada por Pekar, as histórias em quadrinhos da revista American Splendor (que, aliás, é o nome original do filme).
Tudo se deveu à amizade de Pekar com o lendário cartunista Robert Crumb, criador do gato Fritz e de Mr. Natural. Crumb, ao morar um tempo em Cleveland durante sua juventude, veio a conhecer um colecionador de discos e entusiasta de jazz, justamente Harvey. Ficaram amigos, os anos passaram, e os quadrinhos de Crumb se tornaram um grande sucesso, a ponto de se tornar um dos símbolos do underground americano.
Harvey, enquanto isso, apenas gastava seus dias no arquivo do hospital. Divorciou-se, e o tempo o tornava mais e mais casmurro e isolado. Gastava todo seu dinheiro em discos de jazz, que ocupavam todos os espaços de seu lar. Certo dia, apanhou uma pasta do arquivo de um paciente morto. O homem tinha sido arquivista, como ele. Um desconhecido. A vida dele passara, sem deixar marcas.
Isso abalou Harvey, que resolveu fazer algo mais que ser um mero funcionário subalterno num hospital. Ele começou a escrever roteiros de histórias em quadrinhos. Rascunhava as tramas e os esboços em papel e utilizava bonecos de palito para visualizar suas idéias. Tinha um plano. Usaria o dinheiro que gastava em discos para financiar a publicação. Havia um porém, não sabia desenhar.
Mas isso não era problema para quem era amigo de um desenhista consagrado. De tempos em tempos , Crumb visitava Cleveland e revia a velha patota. Numa dessas ocasiões, Harvey mostrou suas histórias ao cartunista, que se interessou pelo material. Logo surgia a revista American Splendor, que seria ilustrada por diversos artistas, “convencidos” por Harvey a trabalharem para ele. Até hoje, é a única parceria de Crumb com outro roteirista, já que o cartunista elaborava suas próprias tramas.
Diferente de outros quadrinhos, American Splendor não tratava de super-heróis ou alienígenas. Também não era como as histórias de Crumb, que tinham animais falantes ou nonsense, com um pé no fantasioso. Harvey tratava simplesmente da sua vida, a história de um homem médio, às voltas com velhas judias que travavam a fila do supermercado e office-boys que buscavam um extra vendendo discos usados. Os pequenos dramas, desejos e frustrações dos habitantes de Cleveland, uma cidade sem glamour e pouco citada no imaginário americano.
Pekar fez sucesso com suas tramas. Uma dona de loja de quadrinhos de outro estado, Joyce, fã de seu trabalho, começou a se corresponder com Harvey. Logo ela estaria largando sua cidade e se mudando para Cleveland. Estão casados até hoje.
As histórias de Pekar também atraíram a mídia, que logo se interessou pela história do arquivista que roteirizava quadrinhos nas horas vagas. Até peças de teatro foram montadas tendo por base American Splendor, uma delas estrelada por Dan Castellaneta, a voz original de Homer Simpson, do longevo seriado Os Simpsons. A MTV descobriu os amigos bizarros e nerds de Harvey e os expôs em esquetes.
Harvey passou a ser convidado regular do programa do entrevistador Dave Letterman. Mas o relativo sucesso não permitia que Harvey largasse seu trabalho no hospital. Em sua neura e rabugice, passou a desdenhar da atenção recebida, chegando ao ponto de ser uma das poucas pessoas que irritaram o sempre bonachão Dave. Uma das conturbadas visitas de Harvey ao Late Show, de 1988, pode ser vista no site YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=iBr4NxujLvw). Dave acabaria por banir Harvey de seu programa.
O filme tem interessantes inserções de animação, como no trecho em que Joyce está para conhecer Harvey, que só conhece dos quadrinhos, e tem dúvidas sobre sua aparência. De acordo com uma concepção artística, Harvey podia ter a aparência de um jovem Marlon Brando. Na visão de outro desenhista, podia ser um gorila peludo.
Até mesmo dramas pesados de Harvey, como a sua luta contra um câncer, virou história em quadrinhos. Our Cancer Year trata de sua dolorosa experiência, e foi uma graphic novel bastante premiada.
A Conrad, que lança no Brasil a obra de Crumb e Neil Gaiman (adoro essa editora!) tem em seu catálogo o livro Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos (American Splendor presents Bob & Harv´s Comics), compilando algumas histórias de Pekar que Crumb desenhou. Como sempre digo, esse livro é encontrado nas melhores casas do ramo, não ganhei nada com isso.
Achei o filme interessante. Confesso que assisti porque era a história de um amigo de Robert Crumb, de quem sou fã. Mas a história de Harvey Pekar tem brilho próprio. Seu sucesso tem razão de ser. Diferentemente de outras ficções, em que o leitor muitas vezes é atirado em mundos de fantasia, onde pessoas voam e usam a cueca por cima da calça, Pekar usou os quadrinhos para mostrar a vida real, e isso era uma novidade neste meio. Qualquer um podia se identificar com suas histórias, e não precisava mais ler os jornais ou um romance para isso, e sim letras em balões e desenhos.
Aliás, está mais que na hora dos quadrinhos terem o seu status de arte reconhecido, já que alguns grandes criadores, como Will Eisner, e os já citados Gaiman, Pekar e Crumb, escolheram essa mídia para dar vazão às suas imaginações. Assistir esse filme pode colaborar para tanto.
Ficha Técnica - Anti-Herói Americano (American Splendor, EUA/2003, 101 min. Comédia dramática. Dir. Shari Springer Berman e Robert Pulcini)
2 Comments:
Oi Gu
Li e gostei muito ....
Corrija aí, é David Letterman e não Dave...
Parabéns pelo blog
Fe
Olá,
É que eu assisto o Late Show faz tempo, e sou íntimo do Dave. Assim como o Al Pacino chama o uísque Jack Daniels de John Daniels em Perfume de Mulher.
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