Lei Seca
Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto
domingo, dezembro 23, 2007
O Lei Seca deseja a todos os seus leitores boas festas, e um 2.008 melhor que 2.007 e pior que 2.009. Até janeiro!
terça-feira, dezembro 18, 2007
Lua perdida
Há um conhecido filme, Apollo 13, com Tom Hanks, que conta a história da fracassada missão à Lua de mesmo nome, ocorrida em 1970, e que quase acabou com a morte dos tripulantes da nave. Ele é baseado num sério livro co-escrito por Jim Lovell, um dos astronautas, chamado Lost Moon (Lua perdida).
Eles nunca chegaram à Lua. Esse é um dos aspectos da viagem que o título do livro parece querer enfocar, e que no filme só aparece num breve lamento silencioso de Tom Hanks ao olhar para o nosso satélite. Passado o susto que quase lhe custou a vida, o astronauta lamenta não ter pisado no solo lunar. Ele nunca irá dar saltos na gravidade baixa, ou olhar a Terra do chão de outro lugar. Jamais terá outra chance sobre a Lua, como as estirpes condenadas a cem anos de solidão jamais teriam outra oportunidade sobre a Terra.
Eu, provavelmente, não pisarei na Lua. A popularização das viagens além da atmosfera não será no meu tempo. Mas há um lugar mais perto, que para mim é o equivalente à Lua para Jim Lovell. É o nosso estado da Bahia.
Certa vez embarquei num navio, o Island Escape, junto com meu amigo Caio, para um cruzeiro de uma semana. Estávamos empolgados com as paradas que ocorreriam no Rio e em Salvador. A viagem prometia.
O navio não tinha uma estrutura tão boa. Não havia muito o que fazer lá durante o dia, exceto ficar na piscina. Enquanto o navio estava em alto-mar o cassino funcionava, e eu desenvolvi um método de jogo para os caça-níqueis que me permitiria ganhar oito dólares por dia (não adiantam me ameaçar, não conto o segredo). Até o fim da viagem eu teria 56 dólares a mais.
No dia seguinte após a partida nós descemos no Rio, onde um taxista careiro e boquirroto nos levou ao Corcovado, para vermos o indefectível Cristo. Voltamos ao Island e o navio rumou norte, em direção à Bahia. Eu finalmente conheceria Salvador, o Pelourinho e o Elevador Lacerda. Tomaria um chope no Farol da Barra.
Mas enquanto isso, nas engrenagens do navio, uma peça defeituosa pifava de vez. Imaginem como num filme, um close em câmera lenta para a peça em questão, e a fumacinha saindo...
Estava no cassino, pronto para quebrar novamente a banca e obter meus oito dólares daquela noite, quando o sistema de som do navio começa a transmitir uma mensagem especial do comandante. Eu não conseguia escutar direito. As pessoas começaram a se alvoroçar. Pelo tumulto parecia que ele estava anunciando que um iceberg havia se chocado contra o casco, e que os botes salva-vidas já estavam a postos.
Quando os ânimos se acalmaram pude entender. O ar-condicionado do navio havia quebrado, o que impossibilitaria que a viagem prosseguisse até a Bahia, que tinha águas muito quentes. O navio voltaria à Santos no dia seguinte, um domingo, e depois seguiria para um outro roteiro, tendo por destino Florianópolis, região de águas geladas. Eram dadas três opções. Descer em Santos no dia seguinte e pegar o dinheiro de volta, ou seguir para o roteiro no Sul, ou embarcar para a mesma viagem uma semana depois. Deliberei com meu companheiro de viagem. Caio não podia embarcar em uma semana, e eu tinha acabado de passar alguns dias na capital catarinense. O melhor custo-benefício era Santos e o reembolso. Afinal,era um mini-cruzeiro de graça.
Como dito, no dia seguinte o navio estava atracado em Santos. Em boa sacada, percebi que não era preciso descer imediatamente. Passamos o dia no navio, tomando drinques na piscina e comendo, antes que o Island partisse de novo. Era como um dia no clube.
Mas desci do transatlântico com a sensação de que faltava algo. Era a Bahia, então perdida. Por muito tempo olhei para as fotos de lá como os astronautas da Apollo 13 olham para a Lua.
Então, a reviravolta. Parte da minha família marcou, no começo do ano, para a semana do Natal, um cruzeiro à Bahia. Estava morrendo de inveja deles.
Até que recebo a notícia de uma desistência. Minha avó não iria mais, e para não perder a passagem eu sou convidado a assumir o lugar dela. Enfim, conhecerei a minha Lua perdida.
Sinto-me como outro personagem de filme, o Red (Morgan Freeman) de Um Sonho de Liberdade. Após quarenta anos na cadeia, ele é posto em liberdade condicional. Resolve ir encontrar seu amigo Andy Dufresne, que havia escapado da prisão em que estavam e o aguardava no México, tocando um hotel à beira do mar, num local sem memória.
Red, no ônibus rumo à cidadezinha de Zihuatanejo, pensa: “Espero que o Pacífico seja tão azul quanto nos meus sonhos. Espero.” Eu, espero que o Atlântico da Bahia seja tão azul quanto nos meus sonhos. Espero.
Eles nunca chegaram à Lua. Esse é um dos aspectos da viagem que o título do livro parece querer enfocar, e que no filme só aparece num breve lamento silencioso de Tom Hanks ao olhar para o nosso satélite. Passado o susto que quase lhe custou a vida, o astronauta lamenta não ter pisado no solo lunar. Ele nunca irá dar saltos na gravidade baixa, ou olhar a Terra do chão de outro lugar. Jamais terá outra chance sobre a Lua, como as estirpes condenadas a cem anos de solidão jamais teriam outra oportunidade sobre a Terra.
Eu, provavelmente, não pisarei na Lua. A popularização das viagens além da atmosfera não será no meu tempo. Mas há um lugar mais perto, que para mim é o equivalente à Lua para Jim Lovell. É o nosso estado da Bahia.
Certa vez embarquei num navio, o Island Escape, junto com meu amigo Caio, para um cruzeiro de uma semana. Estávamos empolgados com as paradas que ocorreriam no Rio e em Salvador. A viagem prometia.
O navio não tinha uma estrutura tão boa. Não havia muito o que fazer lá durante o dia, exceto ficar na piscina. Enquanto o navio estava em alto-mar o cassino funcionava, e eu desenvolvi um método de jogo para os caça-níqueis que me permitiria ganhar oito dólares por dia (não adiantam me ameaçar, não conto o segredo). Até o fim da viagem eu teria 56 dólares a mais.
No dia seguinte após a partida nós descemos no Rio, onde um taxista careiro e boquirroto nos levou ao Corcovado, para vermos o indefectível Cristo. Voltamos ao Island e o navio rumou norte, em direção à Bahia. Eu finalmente conheceria Salvador, o Pelourinho e o Elevador Lacerda. Tomaria um chope no Farol da Barra.
Mas enquanto isso, nas engrenagens do navio, uma peça defeituosa pifava de vez. Imaginem como num filme, um close em câmera lenta para a peça em questão, e a fumacinha saindo...
Estava no cassino, pronto para quebrar novamente a banca e obter meus oito dólares daquela noite, quando o sistema de som do navio começa a transmitir uma mensagem especial do comandante. Eu não conseguia escutar direito. As pessoas começaram a se alvoroçar. Pelo tumulto parecia que ele estava anunciando que um iceberg havia se chocado contra o casco, e que os botes salva-vidas já estavam a postos.
Quando os ânimos se acalmaram pude entender. O ar-condicionado do navio havia quebrado, o que impossibilitaria que a viagem prosseguisse até a Bahia, que tinha águas muito quentes. O navio voltaria à Santos no dia seguinte, um domingo, e depois seguiria para um outro roteiro, tendo por destino Florianópolis, região de águas geladas. Eram dadas três opções. Descer em Santos no dia seguinte e pegar o dinheiro de volta, ou seguir para o roteiro no Sul, ou embarcar para a mesma viagem uma semana depois. Deliberei com meu companheiro de viagem. Caio não podia embarcar em uma semana, e eu tinha acabado de passar alguns dias na capital catarinense. O melhor custo-benefício era Santos e o reembolso. Afinal,era um mini-cruzeiro de graça.
Como dito, no dia seguinte o navio estava atracado em Santos. Em boa sacada, percebi que não era preciso descer imediatamente. Passamos o dia no navio, tomando drinques na piscina e comendo, antes que o Island partisse de novo. Era como um dia no clube.
Mas desci do transatlântico com a sensação de que faltava algo. Era a Bahia, então perdida. Por muito tempo olhei para as fotos de lá como os astronautas da Apollo 13 olham para a Lua.
Então, a reviravolta. Parte da minha família marcou, no começo do ano, para a semana do Natal, um cruzeiro à Bahia. Estava morrendo de inveja deles.
Até que recebo a notícia de uma desistência. Minha avó não iria mais, e para não perder a passagem eu sou convidado a assumir o lugar dela. Enfim, conhecerei a minha Lua perdida.
Sinto-me como outro personagem de filme, o Red (Morgan Freeman) de Um Sonho de Liberdade. Após quarenta anos na cadeia, ele é posto em liberdade condicional. Resolve ir encontrar seu amigo Andy Dufresne, que havia escapado da prisão em que estavam e o aguardava no México, tocando um hotel à beira do mar, num local sem memória.
Red, no ônibus rumo à cidadezinha de Zihuatanejo, pensa: “Espero que o Pacífico seja tão azul quanto nos meus sonhos. Espero.” Eu, espero que o Atlântico da Bahia seja tão azul quanto nos meus sonhos. Espero.
Interlúdio
Meus caros leitores.
Vou interromper um pouco a saga do Oitavo Passo. Estou com problemas criativos quanto à parte final.
Postarei outra crônica que espero que vocês gostem, Lua perdida.
Vou interromper um pouco a saga do Oitavo Passo. Estou com problemas criativos quanto à parte final.
Postarei outra crônica que espero que vocês gostem, Lua perdida.
segunda-feira, dezembro 17, 2007
O Oitavo Passo – parte 2 de 3
Isabela
Gabriel é alcoólatra e está há sessenta e dois dias sem beber. Segue o programa de Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos e está no Oitavo, que consiste em reparar os danos às pessoas que ofendeu. Seu plano era se reconciliar com duas ex-namoradas, Isabela e Letícia. A primeira conversa seria com Isabela, que morava em Guarulhos, na Grande São Paulo.
Saiu antes do horário de pico e chegou sem dificuldades em Guarulhos, pela Marginal. Eram quase seis horas da noite, iria demorar a escurecer, pelo horário de verão. Esperou no carro um pouco antes de tocar a campainha. Havia muito tempo que não voltava àquele bairro, tristemente familiar. Jurou um dia que nunca mais moraria ali. Sua antiga casa não era muito longe. Mas não tinha a menor vontade de revê-la.
Observou o movimento. Criava coragem. No meio da rua um menino magro empinava pipas driblando os fios elétricos. Do outro lado um bar já começava a receber os primeiros fregueses após o trabalho. Som de pagode logo começaria a escapar do local.
Guarulhos era apenas aquilo. Um gueto sem graça. Uma cidade-dormitório e industrial sem qualquer atrativo. Nunca mais.
Enfim, respirou fundo e tocou a campainha. Sons de passos dentro da casa. Qualquer um da família poderia atender a porta. Rezou para não ser o pai. A porta abre, era a irmã dela:
- Oi Cíntia.
- Gabriel? Nossa, tá vivo?
Trocam os protocolares dois beijinhos no rosto. Cíntia era parecida com a irmã. Ela o convida a entrar.
- O que você está fazendo aqui no bairro?
- Estava passando e resolvi ver sua irmã. Ela está aí?
- Ela está saindo do banho. Ah, olha ela aí...
Isabela se aproximava, esfregando uma toalha nos cabelos molhados. Pelo fim traumático que tiveram podia esperar até mesmo um tapa na cara. Ao contrário. Ela sorria, se aproximou e o beijou no rosto. O cheiro do mesmo sabonete barato.
- Gabriel! O que você está fazendo aqui?
- Vim dar uma olhada em você.
Cíntia pede licença e sai da sala. Isabela larga a toalha numa cadeira e começa a fazer o papel de anfitriã:
- Você aceita uma água?
- Não, obrigado. Escuta, vocês estão morando sozinhas? E seu pai? Sua mãe?
- Eles foram fazer compras. Voltam daqui a pouco.
Passam um tempo atualizando as informações sobre as respectivas famílias e conhecidos. Quem casou, quem saiu dali. Alguns amigos morreram, outros estavam presos. Isabela largou a faculdade, não conseguia mais pagar. E não, ela não estava namorando.
Deixou Isabela saber que estava casado, se é que ela não percebeu a aliança na mão esquerda. Gastaram quinze minutos nisso. Gabriel estava desconfortável. Sua missão aguardava, mas não queria falar de um assunto tão delicado ali. Os seus ex-sogros podiam voltar a qualquer momento. Isabela parecia ter superado tudo, mas não podia dizer o mesmo deles. As expectativas dos pais sempre são maiores.
- Isabela, tinha um negócio importante para lhe falar. O que você acha de dar uma volta no bairro?
- Beleza. Vamos.
Ela calçou uma sapatilha gasta. O mesmo mal-gosto, e a mesma falta de grana para algo melhor.
Circularam, a certa distância um do outro, pelas ruas humildes. Aquele bairro não mudava, alguns não sairiam nunca dali. As opções de vida para os homens eram os quatro C´s: construção, chão de fábrica, cadeia e cemitério.
Gabriel revelou seu intento, mas sem mencionar nada sobre os AA. Era uma questão anterior.
- Bom, Isabela. A gente não terminou de um jeito legal. Eu só queria acertar isso com você, por mais doloroso que seja. E pedir desculpas.
- Gab, você não precisa pedir desculpa por nada. Já foi, passou.
- Eu não queria revirar esse assunto. Mas quero que saiba que eu tenho uma razão para isso. Está no meu peito, e só você podia ouvir.
Queria falar para ela que a largou porque não a amava mais. Que sempre quis sair da periferia e nunca mais voltar. Que partiu o coração dela ao fazerem amor no último dia, uma hora antes dele chamá-la para uma conversa séria. Que era um cafajeste que dormiu com ela, nesse dia, apenas por ser homem, para poder possuí-la uma última vez.
Mas essas coisas não eram simples de dizer. Isabela o olhava com aqueles olhos grandes e castanhos de sempre. Havia algo no fundo deles. Ela parecia temer o que ele tinha a dizer. Provavelmente tinha medo que ele o lembrasse daquela tarde terrível, de muito choro, em que o coração dela e os sonhos de sair dali com ele um dia foram jogados no lixo. Em que ela se sentiu um pedaço de papel usado quando ele saiu de cima de seu corpo e anunciou que partia.
Gabriel percebeu então que não precisaria dizer tudo. A sua redenção e busca de paz com seus demônios não tinha que ser às custas de outros. Então disse:
- Isabela, desculpa por termos terminado daquele jeito. Não justifica, mas eu era muito novo. Você lembra de tudo o que se passou naquele dia, não?
A jovem já tinha lágrimas nos olhos, mas não chorava. Gabriel prosseguiu:
- Aquilo não tem desculpa. Mas espero que um dia você me perdoe. Você sabe o que aconteceu. E eu peço desculpa por tudo, tudo mesmo.
Isabela o abraçou:
- Eu já te perdoei há muito tempo. Agora a vida continua.
Gabriel a levou de volta à sua casa. Se abraçaram mais uma vez. Ela não chegou a chorar na sua frente, e entrou. Ficou sem saber se, atrás daquela porta, ela estaria no chão a soluçar, lembrando daquela tarde. Ela nem perguntou se ele ia pelo menos retomar a amizade ou visitar o bairro de vez em quando. Isabela sabia a resposta.
Enquanto dirigia de volta à São Paulo, rumo à casa de Letícia, foi entendendo que nunca se sentiu conectado àquele bairro humilde de Guarulhos, e à tudo que ele representava. Isabela era o bairro. Emblema das coisas que não mudam. Ficaria lá para sempre, plantada como uma árvore, à mercê dos acontecimentos. Ele a largou após fazerem amor simplesmente porque nunca havia se importado com ela ou seus sentimentos. Ela tinha esperanças de casamento. Ele jamais pensou nisso com ela.
Antes de sair do bairro aguardou o sinal vermelho abrir numa esquina, antes da Marginal. Havia outro bar ali perto, só há bares na periferia. Um monte de gente fugindo de si mesmos e de suas vidas duras. Tinha vontade de tomar um trago também, mas não podia. O dia 63 logo chegaria.
Era gozado. Andou tanto em sua vida. Conquistou uma profissão, uma esposa boa, um apartamento longe dali, esse carro. Mas um dos problemas típicos daquela cidade cheia de perdedores nunca o deixaria. Tinha que conter aquele demônio um dia de cada vez.
Isabela se tornou uma lembrança distante enquanto ele se aproximava da cidade. Ainda havia Letícia.
Gabriel é alcoólatra e está há sessenta e dois dias sem beber. Segue o programa de Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos e está no Oitavo, que consiste em reparar os danos às pessoas que ofendeu. Seu plano era se reconciliar com duas ex-namoradas, Isabela e Letícia. A primeira conversa seria com Isabela, que morava em Guarulhos, na Grande São Paulo.
Saiu antes do horário de pico e chegou sem dificuldades em Guarulhos, pela Marginal. Eram quase seis horas da noite, iria demorar a escurecer, pelo horário de verão. Esperou no carro um pouco antes de tocar a campainha. Havia muito tempo que não voltava àquele bairro, tristemente familiar. Jurou um dia que nunca mais moraria ali. Sua antiga casa não era muito longe. Mas não tinha a menor vontade de revê-la.
Observou o movimento. Criava coragem. No meio da rua um menino magro empinava pipas driblando os fios elétricos. Do outro lado um bar já começava a receber os primeiros fregueses após o trabalho. Som de pagode logo começaria a escapar do local.
Guarulhos era apenas aquilo. Um gueto sem graça. Uma cidade-dormitório e industrial sem qualquer atrativo. Nunca mais.
Enfim, respirou fundo e tocou a campainha. Sons de passos dentro da casa. Qualquer um da família poderia atender a porta. Rezou para não ser o pai. A porta abre, era a irmã dela:
- Oi Cíntia.
- Gabriel? Nossa, tá vivo?
Trocam os protocolares dois beijinhos no rosto. Cíntia era parecida com a irmã. Ela o convida a entrar.
- O que você está fazendo aqui no bairro?
- Estava passando e resolvi ver sua irmã. Ela está aí?
- Ela está saindo do banho. Ah, olha ela aí...
Isabela se aproximava, esfregando uma toalha nos cabelos molhados. Pelo fim traumático que tiveram podia esperar até mesmo um tapa na cara. Ao contrário. Ela sorria, se aproximou e o beijou no rosto. O cheiro do mesmo sabonete barato.
- Gabriel! O que você está fazendo aqui?
- Vim dar uma olhada em você.
Cíntia pede licença e sai da sala. Isabela larga a toalha numa cadeira e começa a fazer o papel de anfitriã:
- Você aceita uma água?
- Não, obrigado. Escuta, vocês estão morando sozinhas? E seu pai? Sua mãe?
- Eles foram fazer compras. Voltam daqui a pouco.
Passam um tempo atualizando as informações sobre as respectivas famílias e conhecidos. Quem casou, quem saiu dali. Alguns amigos morreram, outros estavam presos. Isabela largou a faculdade, não conseguia mais pagar. E não, ela não estava namorando.
Deixou Isabela saber que estava casado, se é que ela não percebeu a aliança na mão esquerda. Gastaram quinze minutos nisso. Gabriel estava desconfortável. Sua missão aguardava, mas não queria falar de um assunto tão delicado ali. Os seus ex-sogros podiam voltar a qualquer momento. Isabela parecia ter superado tudo, mas não podia dizer o mesmo deles. As expectativas dos pais sempre são maiores.
- Isabela, tinha um negócio importante para lhe falar. O que você acha de dar uma volta no bairro?
- Beleza. Vamos.
Ela calçou uma sapatilha gasta. O mesmo mal-gosto, e a mesma falta de grana para algo melhor.
Circularam, a certa distância um do outro, pelas ruas humildes. Aquele bairro não mudava, alguns não sairiam nunca dali. As opções de vida para os homens eram os quatro C´s: construção, chão de fábrica, cadeia e cemitério.
Gabriel revelou seu intento, mas sem mencionar nada sobre os AA. Era uma questão anterior.
- Bom, Isabela. A gente não terminou de um jeito legal. Eu só queria acertar isso com você, por mais doloroso que seja. E pedir desculpas.
- Gab, você não precisa pedir desculpa por nada. Já foi, passou.
- Eu não queria revirar esse assunto. Mas quero que saiba que eu tenho uma razão para isso. Está no meu peito, e só você podia ouvir.
Queria falar para ela que a largou porque não a amava mais. Que sempre quis sair da periferia e nunca mais voltar. Que partiu o coração dela ao fazerem amor no último dia, uma hora antes dele chamá-la para uma conversa séria. Que era um cafajeste que dormiu com ela, nesse dia, apenas por ser homem, para poder possuí-la uma última vez.
Mas essas coisas não eram simples de dizer. Isabela o olhava com aqueles olhos grandes e castanhos de sempre. Havia algo no fundo deles. Ela parecia temer o que ele tinha a dizer. Provavelmente tinha medo que ele o lembrasse daquela tarde terrível, de muito choro, em que o coração dela e os sonhos de sair dali com ele um dia foram jogados no lixo. Em que ela se sentiu um pedaço de papel usado quando ele saiu de cima de seu corpo e anunciou que partia.
Gabriel percebeu então que não precisaria dizer tudo. A sua redenção e busca de paz com seus demônios não tinha que ser às custas de outros. Então disse:
- Isabela, desculpa por termos terminado daquele jeito. Não justifica, mas eu era muito novo. Você lembra de tudo o que se passou naquele dia, não?
A jovem já tinha lágrimas nos olhos, mas não chorava. Gabriel prosseguiu:
- Aquilo não tem desculpa. Mas espero que um dia você me perdoe. Você sabe o que aconteceu. E eu peço desculpa por tudo, tudo mesmo.
Isabela o abraçou:
- Eu já te perdoei há muito tempo. Agora a vida continua.
Gabriel a levou de volta à sua casa. Se abraçaram mais uma vez. Ela não chegou a chorar na sua frente, e entrou. Ficou sem saber se, atrás daquela porta, ela estaria no chão a soluçar, lembrando daquela tarde. Ela nem perguntou se ele ia pelo menos retomar a amizade ou visitar o bairro de vez em quando. Isabela sabia a resposta.
Enquanto dirigia de volta à São Paulo, rumo à casa de Letícia, foi entendendo que nunca se sentiu conectado àquele bairro humilde de Guarulhos, e à tudo que ele representava. Isabela era o bairro. Emblema das coisas que não mudam. Ficaria lá para sempre, plantada como uma árvore, à mercê dos acontecimentos. Ele a largou após fazerem amor simplesmente porque nunca havia se importado com ela ou seus sentimentos. Ela tinha esperanças de casamento. Ele jamais pensou nisso com ela.
Antes de sair do bairro aguardou o sinal vermelho abrir numa esquina, antes da Marginal. Havia outro bar ali perto, só há bares na periferia. Um monte de gente fugindo de si mesmos e de suas vidas duras. Tinha vontade de tomar um trago também, mas não podia. O dia 63 logo chegaria.
Era gozado. Andou tanto em sua vida. Conquistou uma profissão, uma esposa boa, um apartamento longe dali, esse carro. Mas um dos problemas típicos daquela cidade cheia de perdedores nunca o deixaria. Tinha que conter aquele demônio um dia de cada vez.
Isabela se tornou uma lembrança distante enquanto ele se aproximava da cidade. Ainda havia Letícia.
quinta-feira, dezembro 13, 2007
O Oitavo Passo – Parte 1 de 3
Assuntos prefaciais
Gabriel estava há sessenta e dois dias sem beber. Cada dia sem álcool era uma pequena vitória, como diziam os Alcoólicos Anônimos. Não achava que tinha um problema tão grande assim com bebida, mas há alguns meses ele aderiu a caminhada pelo programa de Doze Passos dos AA.
O Primeiro Passo era o mais difícil, admitir que tinha um problema com álcool. Havia algo, mas não era uma tragédia. Nas reuniões confirmou a suspeita de que não estava tão mal assim. Havia ali gente que bateu o carro e matou amigos. Homens que espancaram a esposa. Um professor de medicina que perdeu tudo para a garrafa e habitou a rua com mendigos.
O seu próprio padrinho, um aposentado chamado Joel, quase esganou o próprio neto ao voltar do bar, após uma noite de bebedeira e sinuca. Estava há 3.931 dias sem beber, anos e anos. Era um exemplo.
O caso de Gabriel era mais de falta de sentido. O programa dos AA parecia interessante, iria torná-lo uma pessoa melhor. Não tinha nada a perder.
Estava um tanto afastado de Deus, o que tornou também duro adotar os passos seguintes. De que Deus estavam eles falando? Para facilitar, imaginou aquele Deus de barba branca, que às vezes era amor e por outras era colérico e vingativo, promotor de chacinas de filisteus e outros a Ele menores. Criou para essa divindade uma personalidade mais agradável. Voltou até a rezar.
Tinha já superado o Sétimo Passo, que tinha a vez com Deus e com suas próprias imperfeições, e começado o Oitavo, que, segundo a enxovalhada cartilha, que já lera tantas vezes, era : “Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados”.
A memória de muitas noites estava nos ralos e privadas de muitos e incontáveis banheiros de São Paulo afora. Deixou muito de si nas calçadas, no banco do carro e nos tapetes de casa. Nunca conseguiria se redimir perante aquele segurança que acertou na cabeça com uma lata, abrindo um corte fundo. Ou com gente desconhecida que fechou no trânsito com seu carro sem controle.
Havia gente próxima e ofensas que o álcool não apagou da memória. Essa parte foi até fácil. Suas intenções eram puras e sinceras. De joelhos suplicou perdão à sua velha mãe pelas grosserias e impropérios. Visitou amigos e ex-amigos e pediu desculpas. Aos prantos pediu à sua mulher as mais fortes apologias pelas noites mal-dormidas e dinheiro gasto com seu vício, e, principalmente, pela sua ausência de homem e marido.
De todas essas pessoas Gabriel recebeu amor e sentiu seu coração se aquecer. Às vezes, do fundo do poço, mãos amigas se estendem e oferecem redenção. Não que de todas tenha recebido uma recepção calorosa, mas preferiu acreditar nisso. Sabia que certas ofensas são imperdoáveis.
Hoje, Gabriel pensava. Tentava refazer seus passos. Já buscou se reconciliar com as pessoas mais prejudicadas no seu tempo de perdição. Mas algo não estava certo. Faltava alguma coisa. Não podia avançar ao passo seguinte sem saber.
Circulou de manhã pela cidade, tentando pensar no que era. E concluiu que percorrer o caminho era algo mais amplo. Cumprir o Oitavo Passo não era apenas se desculpar com gente prejudicada pelas bebedeiras, era mais. Englobava ofensas antes do álcool, antes da queda em desgraça.
Não lembrava de ofensas graves antes da descoberta terrível da garrafa, no tempo da faculdade. Não haviam grandes pecados anteriores. Ora, lógico que haviam, pecados originais. Chorou ao lembrar de duas ex-namoradas, e cujos corações despedaçou.
Isabela era de um bairro humilde de Guarulhos, sua cidade natal, da mesma origem, vizinha. Era moça simples, e que, diferente dele, jamais saíra da comunidade. Certo dia, quando lhe surgiu a chance de estudar na capital, ele a deixou, sem maiores explicações. Não queria se sentir preso a nada. Conquistou seu espaço e nunca mais voltou.
A outra era Letícia, e ainda morava em São Paulo. Era executiva de uma grande empresa. Largou ela pela sua esposa. Ou ela o largou, não lembra. Seu amor foi definhando e um dia morreu. Haviam ficado juntos por quatro anos, durante os estudos. Mas houve tempo para muitas ofensas.
Era antes dos exageros com álcool, mas tinha que se redimir.
Enquanto almoçava tomou a resolução. Chegaria em Guarulhos antes da hora do rush. Conversaria com Isabela, que já estaria em casa. Depois voltaria à São Paulo e acertaria as coisas com Letícia, que costumava chegar bem mais tarde. Não podia avisá-las, tinha que ser surpresa. Não sabia a reação que elas podiam ter.
Só esperava que o endereço delas ainda fosse o mesmo.
(continua)
Gabriel estava há sessenta e dois dias sem beber. Cada dia sem álcool era uma pequena vitória, como diziam os Alcoólicos Anônimos. Não achava que tinha um problema tão grande assim com bebida, mas há alguns meses ele aderiu a caminhada pelo programa de Doze Passos dos AA.
O Primeiro Passo era o mais difícil, admitir que tinha um problema com álcool. Havia algo, mas não era uma tragédia. Nas reuniões confirmou a suspeita de que não estava tão mal assim. Havia ali gente que bateu o carro e matou amigos. Homens que espancaram a esposa. Um professor de medicina que perdeu tudo para a garrafa e habitou a rua com mendigos.
O seu próprio padrinho, um aposentado chamado Joel, quase esganou o próprio neto ao voltar do bar, após uma noite de bebedeira e sinuca. Estava há 3.931 dias sem beber, anos e anos. Era um exemplo.
O caso de Gabriel era mais de falta de sentido. O programa dos AA parecia interessante, iria torná-lo uma pessoa melhor. Não tinha nada a perder.
Estava um tanto afastado de Deus, o que tornou também duro adotar os passos seguintes. De que Deus estavam eles falando? Para facilitar, imaginou aquele Deus de barba branca, que às vezes era amor e por outras era colérico e vingativo, promotor de chacinas de filisteus e outros a Ele menores. Criou para essa divindade uma personalidade mais agradável. Voltou até a rezar.
Tinha já superado o Sétimo Passo, que tinha a vez com Deus e com suas próprias imperfeições, e começado o Oitavo, que, segundo a enxovalhada cartilha, que já lera tantas vezes, era : “Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados”.
A memória de muitas noites estava nos ralos e privadas de muitos e incontáveis banheiros de São Paulo afora. Deixou muito de si nas calçadas, no banco do carro e nos tapetes de casa. Nunca conseguiria se redimir perante aquele segurança que acertou na cabeça com uma lata, abrindo um corte fundo. Ou com gente desconhecida que fechou no trânsito com seu carro sem controle.
Havia gente próxima e ofensas que o álcool não apagou da memória. Essa parte foi até fácil. Suas intenções eram puras e sinceras. De joelhos suplicou perdão à sua velha mãe pelas grosserias e impropérios. Visitou amigos e ex-amigos e pediu desculpas. Aos prantos pediu à sua mulher as mais fortes apologias pelas noites mal-dormidas e dinheiro gasto com seu vício, e, principalmente, pela sua ausência de homem e marido.
De todas essas pessoas Gabriel recebeu amor e sentiu seu coração se aquecer. Às vezes, do fundo do poço, mãos amigas se estendem e oferecem redenção. Não que de todas tenha recebido uma recepção calorosa, mas preferiu acreditar nisso. Sabia que certas ofensas são imperdoáveis.
Hoje, Gabriel pensava. Tentava refazer seus passos. Já buscou se reconciliar com as pessoas mais prejudicadas no seu tempo de perdição. Mas algo não estava certo. Faltava alguma coisa. Não podia avançar ao passo seguinte sem saber.
Circulou de manhã pela cidade, tentando pensar no que era. E concluiu que percorrer o caminho era algo mais amplo. Cumprir o Oitavo Passo não era apenas se desculpar com gente prejudicada pelas bebedeiras, era mais. Englobava ofensas antes do álcool, antes da queda em desgraça.
Não lembrava de ofensas graves antes da descoberta terrível da garrafa, no tempo da faculdade. Não haviam grandes pecados anteriores. Ora, lógico que haviam, pecados originais. Chorou ao lembrar de duas ex-namoradas, e cujos corações despedaçou.
Isabela era de um bairro humilde de Guarulhos, sua cidade natal, da mesma origem, vizinha. Era moça simples, e que, diferente dele, jamais saíra da comunidade. Certo dia, quando lhe surgiu a chance de estudar na capital, ele a deixou, sem maiores explicações. Não queria se sentir preso a nada. Conquistou seu espaço e nunca mais voltou.
A outra era Letícia, e ainda morava em São Paulo. Era executiva de uma grande empresa. Largou ela pela sua esposa. Ou ela o largou, não lembra. Seu amor foi definhando e um dia morreu. Haviam ficado juntos por quatro anos, durante os estudos. Mas houve tempo para muitas ofensas.
Era antes dos exageros com álcool, mas tinha que se redimir.
Enquanto almoçava tomou a resolução. Chegaria em Guarulhos antes da hora do rush. Conversaria com Isabela, que já estaria em casa. Depois voltaria à São Paulo e acertaria as coisas com Letícia, que costumava chegar bem mais tarde. Não podia avisá-las, tinha que ser surpresa. Não sabia a reação que elas podiam ter.
Só esperava que o endereço delas ainda fosse o mesmo.
(continua)
quarta-feira, dezembro 12, 2007
Crônica "Alta-costura para as massas" recebe prestigioso prêmio literário
A crônica "Alta-costura para as massas" acaba de receber prêmio no Concurso Literário promovido por importante entidade de classe da advocacia em São Paulo (não conto qual para não revelar minha identidade, só tem um Luiz Augusto de sócio).
Vocês são bondosos demais! Sabia que esse dia iria chegar, após anos vivendo das migalhas num pequeno apartamento alugado perto da Paulista. Consta que ganharei um troféu (nunca tinha ganho um) e livros (espero que não sejam de Direito).
Estou vestindo uma camiseta "Eu já sabia". É que, pelos elogios dos poucos e bons leitores deste blog eu já sabia que tinha um texto bom, sem falsa modéstia.
Em homenagem, republico aqui a crônica, agora laureada:
Alta-costura para as massas
Estava eu, recém-chegado do trabalho, ainda com as roupas de batalha, pensando em escrever uma crônica, mas paralisado pela preguiça. Toca a campainha. É Nelson Rodrigues, com o cigarro nos lábios, gravatas e suspensórios:
- E aí, tu não vais escrever?
- Nelson, é você? Que honra, a casa está uma bagunça, entre, entre (afasto a pilha de jornais da entrada) ...
Arranjo uma cadeira para Nelson e me sento em outra:
- Nelson, você apareceu em boa hora. Queria escrever, mas não sei sobre o quê.
- Problema besta. Escreve uma história sobre uma viúva infeliz que se mata tomando guaraná com formicida.
- O que é isso, Nelson? Isso seria te plagiar.
- Plagiar a vida? Isso é a realidade. Como ela é.
- Já há tantas histórias sobre isso...
- Que nada, não com a tua visão.
- Tá, pode ser. Mas é um tema meio batido, sem profundidade.
- Imagina! Você tem que ser raso mesmo, escrever rápido, sem pensar muito. Fazer alta-costura para as massas. Bolar uma história por dia, entre o matraquear das máquinas de escrever da redação, com o filho da puta do chefe na tua nuca, pedindo o texto no prazo.
- Não foi você mesmo que disse que toda unanimidade é burra?
- Falei. Você quer escrever para ser lido ou quer guardar a sua voz, como a voz de Deus no Tabacaria do Álvaro de Campos, no fundo do poço? Você prefere ser um gênio incompreendido e morrer louco como o Van Gogh, sem um puto, ou quer ter o sucesso do Dan Brown ou do Stephen King?
- Acho que ser o Dan Brown é mais divertido.
- Claro que é. Até porque gênio você não é. Talvez só incompreendido e louco.
- Poxa, Nelson, essa magoou. Mas estou cansado. Ainda estou de gravata e camisa social, acabei de chegar...
- Crie sua lenda, rapaz. Depois você fala que escrever era a tua tara. Que você não suportava o teu serviço chato e corria de volta, doido para escrever. Que você rascunhava histórias na repartição. Esboçava tramas no trânsito. Criava personagens na cadeira do Teatro Municipal, escutando Mozart. Você já está até bem para a foto do livro, um ar de escritor blasé, de mangas de camisa e gravata torta. Fuma um, toma um uísque, para clarear as idéias.
- Ainda estou sem assunto.
- Pegue uma obsessão sua. Escreva sobre uma garota que te abandonou, uma derrota, uma humilhação. Lembre de quando você corou de vergonha ou de raiva. Espie o mundo pelo buraco da fechadura. Seja moleque, menino, leve, leviano. Dê vazão a uma tara.
Levanto, cheio de moral:
- Não sei quais são minhas obsessões, Nelson. Sei que já tenho um tema, obrigado. Vou falar de uma vez em que espionei pelo buraco da fechadura uma amiga da minha irmã tomando banho, na minha casa, durante a adolescência. Quando ainda existiam fechaduras com buracos grandes. Que gostosa!
Nelson se levanta também. Dá pulinhos, esfrega as mãos:
- É isso, meu jovem. Fala mais. Ela era bonita? Novinha? Virgem?
- Nelson, você vai ter que ler a história mais tarde, como todo mundo. Eu vou escrever outro dia. Aliás, porque eu já escrevi o post de hoje.
- O quê, nossa conversa?
- Que crica, Nelson! Está bom, praticamente um diálogo de Platão.
- E você é o Platão?
- Não sei. Mas você é o Sócrates. E eu te condeno a tomar cicuta.
A visão turva por um segundo. Ao abrir os olhos de novo, Nelson não estava mais lá.
Vocês são bondosos demais! Sabia que esse dia iria chegar, após anos vivendo das migalhas num pequeno apartamento alugado perto da Paulista. Consta que ganharei um troféu (nunca tinha ganho um) e livros (espero que não sejam de Direito).
Estou vestindo uma camiseta "Eu já sabia". É que, pelos elogios dos poucos e bons leitores deste blog eu já sabia que tinha um texto bom, sem falsa modéstia.
Em homenagem, republico aqui a crônica, agora laureada:
Alta-costura para as massas
Estava eu, recém-chegado do trabalho, ainda com as roupas de batalha, pensando em escrever uma crônica, mas paralisado pela preguiça. Toca a campainha. É Nelson Rodrigues, com o cigarro nos lábios, gravatas e suspensórios:
- E aí, tu não vais escrever?
- Nelson, é você? Que honra, a casa está uma bagunça, entre, entre (afasto a pilha de jornais da entrada) ...
Arranjo uma cadeira para Nelson e me sento em outra:
- Nelson, você apareceu em boa hora. Queria escrever, mas não sei sobre o quê.
- Problema besta. Escreve uma história sobre uma viúva infeliz que se mata tomando guaraná com formicida.
- O que é isso, Nelson? Isso seria te plagiar.
- Plagiar a vida? Isso é a realidade. Como ela é.
- Já há tantas histórias sobre isso...
- Que nada, não com a tua visão.
- Tá, pode ser. Mas é um tema meio batido, sem profundidade.
- Imagina! Você tem que ser raso mesmo, escrever rápido, sem pensar muito. Fazer alta-costura para as massas. Bolar uma história por dia, entre o matraquear das máquinas de escrever da redação, com o filho da puta do chefe na tua nuca, pedindo o texto no prazo.
- Não foi você mesmo que disse que toda unanimidade é burra?
- Falei. Você quer escrever para ser lido ou quer guardar a sua voz, como a voz de Deus no Tabacaria do Álvaro de Campos, no fundo do poço? Você prefere ser um gênio incompreendido e morrer louco como o Van Gogh, sem um puto, ou quer ter o sucesso do Dan Brown ou do Stephen King?
- Acho que ser o Dan Brown é mais divertido.
- Claro que é. Até porque gênio você não é. Talvez só incompreendido e louco.
- Poxa, Nelson, essa magoou. Mas estou cansado. Ainda estou de gravata e camisa social, acabei de chegar...
- Crie sua lenda, rapaz. Depois você fala que escrever era a tua tara. Que você não suportava o teu serviço chato e corria de volta, doido para escrever. Que você rascunhava histórias na repartição. Esboçava tramas no trânsito. Criava personagens na cadeira do Teatro Municipal, escutando Mozart. Você já está até bem para a foto do livro, um ar de escritor blasé, de mangas de camisa e gravata torta. Fuma um, toma um uísque, para clarear as idéias.
- Ainda estou sem assunto.
- Pegue uma obsessão sua. Escreva sobre uma garota que te abandonou, uma derrota, uma humilhação. Lembre de quando você corou de vergonha ou de raiva. Espie o mundo pelo buraco da fechadura. Seja moleque, menino, leve, leviano. Dê vazão a uma tara.
Levanto, cheio de moral:
- Não sei quais são minhas obsessões, Nelson. Sei que já tenho um tema, obrigado. Vou falar de uma vez em que espionei pelo buraco da fechadura uma amiga da minha irmã tomando banho, na minha casa, durante a adolescência. Quando ainda existiam fechaduras com buracos grandes. Que gostosa!
Nelson se levanta também. Dá pulinhos, esfrega as mãos:
- É isso, meu jovem. Fala mais. Ela era bonita? Novinha? Virgem?
- Nelson, você vai ter que ler a história mais tarde, como todo mundo. Eu vou escrever outro dia. Aliás, porque eu já escrevi o post de hoje.
- O quê, nossa conversa?
- Que crica, Nelson! Está bom, praticamente um diálogo de Platão.
- E você é o Platão?
- Não sei. Mas você é o Sócrates. E eu te condeno a tomar cicuta.
A visão turva por um segundo. Ao abrir os olhos de novo, Nelson não estava mais lá.
terça-feira, dezembro 11, 2007
Dr. Adib Jatene e a CPMF
O Dr. Adib Jatene, escalado em vários eventos para defender sua cria, a CPMF, se coloca numa posição difícil e lembra outro personagem.
Edward Teller, o pai da bomba H, após criar esse artefato cujo uso principal é assassinar em massa seres humanos, passou o resto de sua vida tentando achar os usos mais esdrúxulos para sua invenção, como desviar meteoros da Terra.
Por mais que tente o Dr. Jatene, é duro acreditar que a CPMF será usada algum dia para melhorar o nosso sistema de saúde, e não para ajudar um governo perdulário a fechar suas contas.
Nesse ponto, a CPMF parece mesmo uma bomba H, mas na economia nacional e nos bolsos dos contribuintes.
Edward Teller, o pai da bomba H, após criar esse artefato cujo uso principal é assassinar em massa seres humanos, passou o resto de sua vida tentando achar os usos mais esdrúxulos para sua invenção, como desviar meteoros da Terra.
Por mais que tente o Dr. Jatene, é duro acreditar que a CPMF será usada algum dia para melhorar o nosso sistema de saúde, e não para ajudar um governo perdulário a fechar suas contas.
Nesse ponto, a CPMF parece mesmo uma bomba H, mas na economia nacional e nos bolsos dos contribuintes.
segunda-feira, dezembro 10, 2007
Um domingo à australiana
Começava o domingo em Edimburgo, Escócia. Da minha cama na albergue contemplei minha mala acorrentada ao aquecedor. Nenhum sinal de arrombamento. Tinha esse trauma desde a última estada em quartos coletivos, quando ficara literalmente descalço graças aos préstimos de um mão-leve.
O plano era atravessar a Royal Mile até o Castelo de Edimburgo, a principal atração da cidade. Um australiano da mesma idade, de apelido Bill, que eu conhecera no dia anterior, e que também estava hospedado no meu quarto, iria junto.
Ele não estava em sua cama, e encontrei-o no corredor. Já estava pronto, com sua pequena mochila, que era tudo o que carregava nessa viagem. Nenhuma preocupação. Eu, ao contrário, até tinha prendido a minha mala para que ela não fugisse. E mais bagagem me aguardava em Londres, para quando voltasse de minha incursão ao norte britânico.
Fomos marchando pela avenida famosa, de olho nos prédios preservados. Meu inglês permitia a comunicação. Tomamos café rápido, de pé, com a refeição apoiada num muro. Era tão cedo que o castelo nem estava aberto.
Enquanto esperava fui perguntando sobre a Austrália. Fiquei com a impressão de que parecia o Brasil. Eles gostavam de surfe, rock e bebida, e o clima era como o nosso.
O castelo então abre seus portões. Os turistas acumulados entram. Circulamos pelas muralhas majestosas.
Muito a se ver. Britânico sabe fazer uma exposição. O museu sobre as guerras do século XX era de primeira. Bill conta que um ressentimento que os australianos guardam é a arapuca armada para eles em 1915, na localidade de Gallipolli, na Turquia, a maior derrota deles em combate. É até um feriado nacional. Nós no Brasil não temos uma grande derrota, vamos perdendo aos poucos, explico.
Muita gente se deu mal ali, presa e torturada. A única compensação é que a ração dos prisioneiros incluía uma dose diária de cerveja.
A lembrança sobre violência faz o australiano perguntar sobre o Brasil, se lá é muito perigoso. Limito-me a dizer que a coisa vai mal para nós. Falar dos detalhes é como estragar uma festa falando de doenças. Estava lá para esquecer um pouco disso.
Tiramos uma foto ao lado da mãe do todos os canhões, o Mons Meg. Disse que era para a posteridade registrar o encontro do 2º Batalhão de Caçadores do Brasil com a 1º Divisão Pára-Quedista da Austrália. Tropa de Elite.
Fora do castelo, vimos outras atrações. Entramos na Galeria Nacional da Escócia. Mas Bill não gostava de arte, e em dez minutos saiu do museu. Fiquei lá meia hora, mas também já estava farto de museus. E nunca gostei de deixar ninguém esperando.
Andamos até uma rua do outro lado do vale. A chuva nos faz achar abrigo num restaurante (e foi difícil achar um aberto). Após o almoço surge a conclusão de que já não havia o que fazer na cidade. No Brasil se iria à praia, se perto.
Perguntei o que se fazia aos domingos na Austrália. Ele respondeu:
- Lá se bebe.
Bebamos, então. A primeira parada foi num bar metido a besta. Nos deu pouco álcool pelas nossas parcas libras e saiu caro. Uma parada estratégica no albergue nos deu mais poder de fogo, com as carteiras que estavam no cofre.
Achamos um pub mais típico. Já eram cinco da tarde. Dois pints de cerveja depois a conversa já estava mais animada. Um jogo de futebol passava na TV. Perguntei a Bill sobre as mulheres na Austrália. Ele disse que eram boas, devolveu a pergunta, e teve a mesma resposta sobre o Brasil. Não entramos em detalhes, mas pude imaginar. Meninas de sotaque forte e bronzeadas. Eu fiquei tentado com as australianas, e acho que ele com as garotas de minha terra. A grama é mais verde no vizinho.
Eu conhecia uma expressão em inglês para o cara pegador, casanova, “Ladies Man” (Homem das mulheres). Seria Bill um “Ladies Man”, perguntei. Ele explicou que na Austrália eles chamam esse cara de “Panties Man” (Homem das calcinhas). Ri muito. Mas a modéstia o impediu de se classificar.
A fome chegava de novo. Pedi um prato típico escocês, o haggis e tatties, espécie de tripas de carneiro com batatas. Era ruim, mas comi mesmo assim.
Quis saber mais sobre a Nova Zelândia, ilha perto da terra dele. Há uma rivalidade, ele explicou. Pelo que entendi, é como a Argentina para nós. Bill conhecia muitas piadas, impublicáveis, sobre os ilhéus e suas ovelhas.
Enquanto me servia de mais um pint, uma senhora loira levanta da mesa ao lado, em que estava com um homem mais velho que ela, e anuncia a ele (e a todos do pub):
- Eu nunca mais vou ver você. So long!
E sai a mulher bufando pela porta do pub. Todos no bar se viram para o homem, que se afunda na cadeira e se esconde atrás da sua caneca de cerveja. Cinco minutos depois o assunto dos convivas já era outro. Mas eu prestei atenção no homem por um tempo. Os primeiros minutos de um fim de caso devem ser terríveis. Depressão total, se você gosta da pessoa. Parecia ser o caso. Meia hora depois ele também tomava o caminho da rua, sem ligar para a garoa que caía e que acompanhava seu estado de espírito.
Sendo a Escócia, chovia de novo. Pegamos guarda-chuvas emprestados no bar (o país é civilizado o bastante para isso) e fomos para outro pub. Haviam garotas lá, mas só ficamos olhando. Eu incitei Bill, o Panties Man, a abordá-las, solteiro que ele era, mas ainda lhe faltava coragem. Ou mais cerveja.
Eu já tinha passado os limites aceitáveis de álcool, mas Bill parecia um saco sem fundo. Outra mudança. Provamos as cervejas de outro lugar. Notei que já eram quase dez da noite. Metade do dia foi passado bebendo cerveja. Se fossemos respeitar a tradição do lugar e beber uísque já teríamos morrido. E a “água da vida” era até mais barata que cerveja.
Bill queria ir a um outro pub, com música ao vivo. Eu já não agüentava e voltei para o albergue. Desejei-lhe boa sorte. Invejei a sua disposição. Perguntei:
- Todo domingo é assim na Austrália?
- É sempre assim, man.
Na manhã seguinte a minha cabeça parecia maior do que era. Bill estava em sua cama. Ele estava acordado. Perguntei como foi. Ele estava prosa, e se gabou de ter conhecido uma garçonete de pub às três da manhã, que topou levá-lo para casa. “É isso aí, Panties Man”, trocei. Ele riu, e confessou que ela era feia e um pouco gorda.
Despedi-me de Bill. Eu tinha uma excursão para os lagos saindo em pouco tempo, e ele iria para Glasgow, ver a cidade de origem de seus ancestrais. Trocamos os endereços de e-mail e combinamos de um dia visitarmos os respectivos países. Talvez ele tope vir para cá ver a Copa do Mundo.
Fiquei imaginando um país que passa os domingos surfando e bebendo cerveja. Exceto pelo bronzeado, parecia pouco saudável.
Percebi que num domingo à australiana não se aprende muita coisa. Exceto os limites de uma ressaca e muitas piadas de neozelandês. Se um dia eu for à Austrália eu volto num vôo de sábado.
O plano era atravessar a Royal Mile até o Castelo de Edimburgo, a principal atração da cidade. Um australiano da mesma idade, de apelido Bill, que eu conhecera no dia anterior, e que também estava hospedado no meu quarto, iria junto.
Ele não estava em sua cama, e encontrei-o no corredor. Já estava pronto, com sua pequena mochila, que era tudo o que carregava nessa viagem. Nenhuma preocupação. Eu, ao contrário, até tinha prendido a minha mala para que ela não fugisse. E mais bagagem me aguardava em Londres, para quando voltasse de minha incursão ao norte britânico.
Fomos marchando pela avenida famosa, de olho nos prédios preservados. Meu inglês permitia a comunicação. Tomamos café rápido, de pé, com a refeição apoiada num muro. Era tão cedo que o castelo nem estava aberto.
Enquanto esperava fui perguntando sobre a Austrália. Fiquei com a impressão de que parecia o Brasil. Eles gostavam de surfe, rock e bebida, e o clima era como o nosso.
O castelo então abre seus portões. Os turistas acumulados entram. Circulamos pelas muralhas majestosas.
Muito a se ver. Britânico sabe fazer uma exposição. O museu sobre as guerras do século XX era de primeira. Bill conta que um ressentimento que os australianos guardam é a arapuca armada para eles em 1915, na localidade de Gallipolli, na Turquia, a maior derrota deles em combate. É até um feriado nacional. Nós no Brasil não temos uma grande derrota, vamos perdendo aos poucos, explico.
Muita gente se deu mal ali, presa e torturada. A única compensação é que a ração dos prisioneiros incluía uma dose diária de cerveja.
A lembrança sobre violência faz o australiano perguntar sobre o Brasil, se lá é muito perigoso. Limito-me a dizer que a coisa vai mal para nós. Falar dos detalhes é como estragar uma festa falando de doenças. Estava lá para esquecer um pouco disso.
Tiramos uma foto ao lado da mãe do todos os canhões, o Mons Meg. Disse que era para a posteridade registrar o encontro do 2º Batalhão de Caçadores do Brasil com a 1º Divisão Pára-Quedista da Austrália. Tropa de Elite.
Fora do castelo, vimos outras atrações. Entramos na Galeria Nacional da Escócia. Mas Bill não gostava de arte, e em dez minutos saiu do museu. Fiquei lá meia hora, mas também já estava farto de museus. E nunca gostei de deixar ninguém esperando.
Andamos até uma rua do outro lado do vale. A chuva nos faz achar abrigo num restaurante (e foi difícil achar um aberto). Após o almoço surge a conclusão de que já não havia o que fazer na cidade. No Brasil se iria à praia, se perto.
Perguntei o que se fazia aos domingos na Austrália. Ele respondeu:
- Lá se bebe.
Bebamos, então. A primeira parada foi num bar metido a besta. Nos deu pouco álcool pelas nossas parcas libras e saiu caro. Uma parada estratégica no albergue nos deu mais poder de fogo, com as carteiras que estavam no cofre.
Achamos um pub mais típico. Já eram cinco da tarde. Dois pints de cerveja depois a conversa já estava mais animada. Um jogo de futebol passava na TV. Perguntei a Bill sobre as mulheres na Austrália. Ele disse que eram boas, devolveu a pergunta, e teve a mesma resposta sobre o Brasil. Não entramos em detalhes, mas pude imaginar. Meninas de sotaque forte e bronzeadas. Eu fiquei tentado com as australianas, e acho que ele com as garotas de minha terra. A grama é mais verde no vizinho.
Eu conhecia uma expressão em inglês para o cara pegador, casanova, “Ladies Man” (Homem das mulheres). Seria Bill um “Ladies Man”, perguntei. Ele explicou que na Austrália eles chamam esse cara de “Panties Man” (Homem das calcinhas). Ri muito. Mas a modéstia o impediu de se classificar.
A fome chegava de novo. Pedi um prato típico escocês, o haggis e tatties, espécie de tripas de carneiro com batatas. Era ruim, mas comi mesmo assim.
Quis saber mais sobre a Nova Zelândia, ilha perto da terra dele. Há uma rivalidade, ele explicou. Pelo que entendi, é como a Argentina para nós. Bill conhecia muitas piadas, impublicáveis, sobre os ilhéus e suas ovelhas.
Enquanto me servia de mais um pint, uma senhora loira levanta da mesa ao lado, em que estava com um homem mais velho que ela, e anuncia a ele (e a todos do pub):
- Eu nunca mais vou ver você. So long!
E sai a mulher bufando pela porta do pub. Todos no bar se viram para o homem, que se afunda na cadeira e se esconde atrás da sua caneca de cerveja. Cinco minutos depois o assunto dos convivas já era outro. Mas eu prestei atenção no homem por um tempo. Os primeiros minutos de um fim de caso devem ser terríveis. Depressão total, se você gosta da pessoa. Parecia ser o caso. Meia hora depois ele também tomava o caminho da rua, sem ligar para a garoa que caía e que acompanhava seu estado de espírito.
Sendo a Escócia, chovia de novo. Pegamos guarda-chuvas emprestados no bar (o país é civilizado o bastante para isso) e fomos para outro pub. Haviam garotas lá, mas só ficamos olhando. Eu incitei Bill, o Panties Man, a abordá-las, solteiro que ele era, mas ainda lhe faltava coragem. Ou mais cerveja.
Eu já tinha passado os limites aceitáveis de álcool, mas Bill parecia um saco sem fundo. Outra mudança. Provamos as cervejas de outro lugar. Notei que já eram quase dez da noite. Metade do dia foi passado bebendo cerveja. Se fossemos respeitar a tradição do lugar e beber uísque já teríamos morrido. E a “água da vida” era até mais barata que cerveja.
Bill queria ir a um outro pub, com música ao vivo. Eu já não agüentava e voltei para o albergue. Desejei-lhe boa sorte. Invejei a sua disposição. Perguntei:
- Todo domingo é assim na Austrália?
- É sempre assim, man.
Na manhã seguinte a minha cabeça parecia maior do que era. Bill estava em sua cama. Ele estava acordado. Perguntei como foi. Ele estava prosa, e se gabou de ter conhecido uma garçonete de pub às três da manhã, que topou levá-lo para casa. “É isso aí, Panties Man”, trocei. Ele riu, e confessou que ela era feia e um pouco gorda.
Despedi-me de Bill. Eu tinha uma excursão para os lagos saindo em pouco tempo, e ele iria para Glasgow, ver a cidade de origem de seus ancestrais. Trocamos os endereços de e-mail e combinamos de um dia visitarmos os respectivos países. Talvez ele tope vir para cá ver a Copa do Mundo.
Fiquei imaginando um país que passa os domingos surfando e bebendo cerveja. Exceto pelo bronzeado, parecia pouco saudável.
Percebi que num domingo à australiana não se aprende muita coisa. Exceto os limites de uma ressaca e muitas piadas de neozelandês. Se um dia eu for à Austrália eu volto num vôo de sábado.
quinta-feira, dezembro 06, 2007
Entrevista com o Extirpador-Geral da República
Consegui agendar uma entrevista exclusiva com um servidor público que não existe e que ocupa um cargo jamais criado, o Extirpador-Geral da República. Sua função é identificar todos os cargos e instituições que ele considere inúteis da República Federativa do Brasil e cortá-las do Orçamento. É trabalho inglório. Ressalvo já que todas as opiniões aqui contidas são de exclusiva responsabilidade do Extirpador-Geral (abreviado com a sigla EGR), já que o próprio entrevistador não descarta a possibilidade de ocupar uma dessas rentáveis sinecuras, antes que a tesoura enferrujada de parca do EGR acabe com a mamata. A entrevista:
LA: Boa tarde, senhor EGR
EGR: Boa tarde. Pode me chamar de Herges.
LA: Senhor Herges, qual será o primeiro corte?
EGR: O Senado. Inteiro.
LA: Por quê?
EGR: Ora, porque é uma piada existir outra Casa de Leis federais, sendo que já existe a Câmara dos Deputados.
LA: E a representação dos Estados, Dr. Herges, como fica?
EGR: Meu jovem, me responda sinceramente. Você acha que o Piauí é igual a São Paulo? Que o voto de um acreano vale o mesmo que, sei lá, dez fluminenses? Tenha dó (bate na mesa e bufa).
LA. Certo. E depois?
EGR: Corto de uma penada essas leis trabalhistas, da década de 1940, que já não protegem ninguém.
LA: E o que acontece?
EGR: Isso acaba com o emprego de um monte de juízes trabalhistas e de procuradores do Trabalho. Transformarei todos em Procuradores DE trabalho (risos nervosos). É o fim também dos sindicalistas e de seus sindicatos pelegos.
LA: E em seguida?
EGR: Acabo com o Superior Tribunal de Justiça
LA: Mas por que, seu Herges?
EGR: Por razões pessoais. Lá é um Tribunal que em tese serve para “unificar a legislação federal”, etc. Meu filho, advogado, mandou um recurso para lá e o mesmo não foi conhecido por “faltarem peças essenciais”, segundo as regras processuais, vê se pode...
LA: O que faltava?
EGR: Uma única procuração do advogado da parte contrária. Aí pensei com meus botões. Se essa Corte faz de tudo para não julgar um recurso, ela está negando justiça. Não precisaria existir. É uma estrutura cara apenas para recusar recursos das partes em litígio e chamar mais gente de ministro. E ainda tem uma sede cara, com projeto do Niemeyer (enfático).
LA: E qual seria a missão seguinte?
EGR: De uma canetada só acabo com todos aqueles cargos em comissão, onde se penduram parentes e correligionários para todos os gostos. Acabo todos os Tribunais de Conta, que não fiscalizam nada. Acabo com o Ministério da Igualdade Racial, que quer criar o racismo no país, e com os outros ministérios inúteis. Acabo com as exigências de reconhecimento de firma, autenticação de documentos e outros registros sem utilidade, o que mata todos os cartórios de notas (dá pulos na cadeira, eufórico).
LA: Parece que não vai sobrar nada, seu Herges. Qual a próxima medida?
EGR: Após deixar Brasília um verdadeiro deserto, sem trocadilho, só restará uma coisa a fazer. Demito todos os servidores do meu órgão. Assino minha própria demissão, apago as luzes do prédio, tranco tudo e entrego as chaves de volta ao Presidente da República.
LA: Sucesso em sua missão, senhor EGR. Obrigado pela entrevista
EGR: Eu é que agradeço.
Avisei desde o começo, até para me eximir de culpa ou dolo. Esse servidor não existe, é como o Saci ou a Mula-Sem-Cabeça. Dá para acreditar nesse papo de ele próprio se demitir? É um piadista, né? Mas tudo o que aqui foi dito pode ser a ele atribuído. Não venham me processar depois.
LA: Boa tarde, senhor EGR
EGR: Boa tarde. Pode me chamar de Herges.
LA: Senhor Herges, qual será o primeiro corte?
EGR: O Senado. Inteiro.
LA: Por quê?
EGR: Ora, porque é uma piada existir outra Casa de Leis federais, sendo que já existe a Câmara dos Deputados.
LA: E a representação dos Estados, Dr. Herges, como fica?
EGR: Meu jovem, me responda sinceramente. Você acha que o Piauí é igual a São Paulo? Que o voto de um acreano vale o mesmo que, sei lá, dez fluminenses? Tenha dó (bate na mesa e bufa).
LA. Certo. E depois?
EGR: Corto de uma penada essas leis trabalhistas, da década de 1940, que já não protegem ninguém.
LA: E o que acontece?
EGR: Isso acaba com o emprego de um monte de juízes trabalhistas e de procuradores do Trabalho. Transformarei todos em Procuradores DE trabalho (risos nervosos). É o fim também dos sindicalistas e de seus sindicatos pelegos.
LA: E em seguida?
EGR: Acabo com o Superior Tribunal de Justiça
LA: Mas por que, seu Herges?
EGR: Por razões pessoais. Lá é um Tribunal que em tese serve para “unificar a legislação federal”, etc. Meu filho, advogado, mandou um recurso para lá e o mesmo não foi conhecido por “faltarem peças essenciais”, segundo as regras processuais, vê se pode...
LA: O que faltava?
EGR: Uma única procuração do advogado da parte contrária. Aí pensei com meus botões. Se essa Corte faz de tudo para não julgar um recurso, ela está negando justiça. Não precisaria existir. É uma estrutura cara apenas para recusar recursos das partes em litígio e chamar mais gente de ministro. E ainda tem uma sede cara, com projeto do Niemeyer (enfático).
LA: E qual seria a missão seguinte?
EGR: De uma canetada só acabo com todos aqueles cargos em comissão, onde se penduram parentes e correligionários para todos os gostos. Acabo todos os Tribunais de Conta, que não fiscalizam nada. Acabo com o Ministério da Igualdade Racial, que quer criar o racismo no país, e com os outros ministérios inúteis. Acabo com as exigências de reconhecimento de firma, autenticação de documentos e outros registros sem utilidade, o que mata todos os cartórios de notas (dá pulos na cadeira, eufórico).
LA: Parece que não vai sobrar nada, seu Herges. Qual a próxima medida?
EGR: Após deixar Brasília um verdadeiro deserto, sem trocadilho, só restará uma coisa a fazer. Demito todos os servidores do meu órgão. Assino minha própria demissão, apago as luzes do prédio, tranco tudo e entrego as chaves de volta ao Presidente da República.
LA: Sucesso em sua missão, senhor EGR. Obrigado pela entrevista
EGR: Eu é que agradeço.
Avisei desde o começo, até para me eximir de culpa ou dolo. Esse servidor não existe, é como o Saci ou a Mula-Sem-Cabeça. Dá para acreditar nesse papo de ele próprio se demitir? É um piadista, né? Mas tudo o que aqui foi dito pode ser a ele atribuído. Não venham me processar depois.
quarta-feira, dezembro 05, 2007
terça-feira, dezembro 04, 2007
O hóspede em Amsterdam
Era definitivo. Não havia gostado mesmo do hotel. Já tivera a má impressão na chegada, quando aqueles três garotos árabes entraram sem convite e foram até o andar dos quartos. Imaginou que eles estavam a fim de furtar algo. A enjoada recepcionista mal deu conta deles, que acabaram saindo porque quiseram. Pestes. Provavelmente filhos de um pai que teve oito filhos. Eles próprios, cada um, terão oito filhos um dia. A miséria deles não acabará nunca.
Lembrava disso enquanto mastigava o pão sem sabor e tomava o leite quase azedo. Dois alemães, turistas também, dividiam uma mesa ao lado.
Em pouco tempo teria que deixar o hotel. Houve um problema com sua reserva. Sua agente de viagens, lá em casa, estava ligando para tudo quanto era lugar a fim de lhe conseguir um quarto. Confiava nela, iria conseguir outro lugar, apesar do feriado holandês.
Não havia o que fazer. Largaria as malas no depósito, iria até o centro e visitaria algum museu. Ligaria para casa mais tarde a fim de saber qual era o novo hotel. Voltaria ao hotel antigo e pegaria suas coisas. Aí começaria a nova fase de sua estada em Amsterdam. Esperava algo melhor, como prêmio pelo aborrecimento.
Um bonde o deixou perto do museu Van Gogh. Daria para o gasto. Olhou sem interesse as pinturas cercadas por multidões de turistas. Tinha vontade de ir embora, mas ao mesmo tempo não queria voltar à rua e ficar sem fazer nada, só esperando a hora de ligar para o Brasil e saber de seu destino. Era cedo. Ficaria.
Girassóis. Campos de trigo. Corvos num fundo amarelo e bege. Um quarto em Arles com suas parcas posses. Amigos. Muita cor. Quanta coisa viu o artista. Um dia ele cortou a própria orelha. Num outro ele resolveu cortar sua própria vida, com um revólver afiado. Seu irmão e marchand o seguiria à tumba alguns meses depois. C´est dommage, lamentariam seus conhecidos franceses.
E décadas depois, nesta mesma Amsterdam, um muçulmano maluco iria abater a tiros e a facadas um descendente dos Van Gogh, um diretor de cinema que portava o sobrenome famoso. Seu pecado foi criticar alguns de seus costumes bárbaros.
Após o almoço ligou para o Brasil. Uma boa notícia. Ficaria num hotel cinco estrelas, o Barbizon Palace, bem no centro. Longe das periferias de árabes. Justo o que esperava, um prêmio pelo aborrecimento de ter ficado sem-teto por algumas horas. Perguntou à agente se ele poderia pegar um táxi para o traslado, para poupar tempo. Claro que sim, ela o ressarciria.
Conforme o combinado, pegou o carro de aluguel. Um Mercedes dos bons o levou até o hotel antigo. O taxista não era falador. Ele próprio não estava a fim de conversa. Queria pegar as malas e ir logo para o hotel novo.
Apanhou sua bagagem em sua antiga hospedagem. Antes de ir embora teve vontade de mandar a recepcionista enjoada para os diabos: “Eu vou para o Barbizon, e você vai ficar aqui”. Deixou quieto.
De volta ao táxi, mais relaxado, conseguiu até falar um pouco com o taxista. Perguntou porque ele usava um Mercedes para o serviço de táxi. Ele disse que os carros para táxi na Holanda são baratos, e aquela marca dá menos gasto com peças. Muito justo.
Chega, enfim, ao Barbizon. Luxo e sofisticação. Um carregador leva sua bagagem ao quarto. Passam pelo concierge, que poderá lhe indicar o melhor de Amsterdam.
“O hotel tem piscina?”, pergunta ao carregador.
“Não, senhor, não tem”.
Deve ser por causa do frio. Não custava perguntar.
Larga uma gorjeta pela ajuda e entra em seu novo lar pelos próximos dias. Uma coletânea de brindes está na mesa da pia. Shampoo, sabonetes, até pasta de dentes, tudo personalizado com o nome do hotel. Atrás, uma banheira espaçosa.
Sobe uma pequena escada que separa o hall de entrada e o banheiro do quarto em si. Uma cama gigantesca, com um edredom bem convidativo.
Seria um desperdício aquilo só para ele. Pela primeira vez em algum tempo lembrou da namorada que largara em casa. Tentava não pensar muito, já que as coisas não andavam bem. Ela mal respondia seus telefonemas. Poderiam aproveitar aquilo muito, se ela tivesse topado ir junto. Paciência.
Havia um guia da cidade ao lado da TV. Um roupão branco de algodão o aguardava no armário. Isso é coisa de gente fina. Vestiu o roupão. Muito confortável. Deitou na cama e acabou adormecendo por uma hora, sem sonhar com nada.
Ao acordar estava a fim de um banho. Colocou a água para esquentar. Esperou a banheira encher lendo algumas páginas de um livro. Insinuou-se para a água morna e escorregou até afundar. Ficou ali por outra hora, até sentir os dedos murcharem, ao limite em que a fome era maior que o prazer que obtinha da água quente.
Enrolou-se no roupão e andou até a bancada, que aninhava o cardápio. Nenhuma mordomia seria completa sem pedir serviço de quarto. Pediu um sanduíche e um refrigerante.
Deitou-se para esperar e ligou a TV. Um canal inglês falava de uma menina sumida em Portugal. Mero seqüestro? Não era seu problema.
Sem agüentar ficar mais parado fuçou as coisas que estavam no quarto. Haviam três livros. A indefectível Bíblia, uma espécie de doutrina de Buda e um livro colorido sobre a cidade. “Amsterdam é uma cidade vibrante e cosmopolita”, dizia uma página do guia, em inglês. Outras anunciavam as atrações da cidade e relembravam sua história. A Era de Ouro holandesa. O Distrito da Luz Vermelha e suas mulheres nas vitrines.
Ligou para a namorada. Pelo fuso ela já estaria em casa. Ela tinha a voz fria e não queria muita conversa. Desligaram. Como dos outros dias, pensou que aquela viagem fora um erro. Mas não ligaria mais. Todo dia era o mesmo tratamento indiferente que ela lhe dava. Resolveriam na volta.
O sino toca. Era o serviço. Comeu sem muito entusiasmo e dormiu.
***
No dia seguinte desceu ao lobby de entrada. Numa das salas seria servido o café da manhã. Havia um piano de cauda ao fundo. Não sabia tocar nada. Foi até o instrumento e aprumou-se na banqueta. Estalou os dedos como um virtuose prestes a deslumbrar uma platéia ansiosa e dedilhou umas notas. Tocou o tema de James Bond, fá fá fá rá fá fá fá fá fá fá rá rá... Um funcionário do hotel se aproximou e pediu silêncio, todos dormiam, era domingo. A arte não é para todo instante...
O café prometia. Queijos importados. Pães. Bolos. Geléias. Ovos preparados de três maneiras. Panquecas. Waffles. Cereais. Até champagne era servido. Só não tomou uma taça por achar que beber sozinho é o primeiro passo para o alcoolismo. Não costumava comer muito ou ver prazer na comida, mas naquela manhã ele se fartou. Sentia-se poderoso.
Breve ida ao quarto para se preparar e o hóspede tomou as ruas. O Distrito da Luz Vermelha era logo ali.
Andou o dia todo e viu muitas coisas. Os olhos se cansaram de ver e os ouvidos de escutar. Um mar de gente e bicicletas, em meio aos bondes modernos e aos carros. Atravessar a rua era um desafio a todo minuto.
Circulou pelas ruas entre os canais. Viu igrejas e casas em barcos. O problema de viajar solo é não ter com quem comentar as coisas vistas.
Uma vendedora de flores chamou sua atenção pela beleza. Era a melhor coisa que vira na viagem. Cabelos loiros descendo pelo rosto, avental de moça do campo. Era até romântico. Flores, e uma beleza tão pura. Nem perdeu seu tempo. Não havia futuro. Não ficaria ali, e ela não iria com ele embora. Perguntou o preço de um vaso das típicas tulipas apenas para ouvir sua voz. Um timbre quase sonoro. Tentador.
Bem perto do hotel, na volta, uma placa num hotel lhe chamou sua atenção. Ela tinha o alto-relevo de um homem tocando trompete e uma mensagem do gênero em baixo:
“Nesse hotel, em 13 de maio de 1988, morreu Chet Baker. Sua música continuará para sempre”.
Já tinha ouvido falar dessa história. O trompetista e cantor gênio provavelmente ingeriu uma quantidade de letal de drogas ou álcool e despencou do segundo andar de um hotel. Aquele diante do seu. Se estivesse passando ali anos atrás, hospedado como agora no hotel vizinho, poderia ter visto a polícia chegando, e o corpo caído no chão, coberto por um lençol. Faria o sinal da cruz e entraria pesaroso em seu hotel, grato de não ser ele o corpo cercado de gente.
Voltou para o seu quarto pensando em Chet. Conhecia só uma música dele. “Let´s get lost. Let´s get lost in each other arms...” Talvez Chet também tenha sido um hóspede solitário, naquele hotel que foi sua última casa, e cuja calçada dura foi a última coisa que sentia na vida. O baque do concreto em sua cabeça cheia de música.
O hóspede se sentia só. Lembrou dos seus e de sua terra, deitado de roupão na cama. Ótimo que essa viagem estava acabando. Mas tinha que aproveitar aquela noite, sua última na Europa. Pegou um bonde e foi para uma região agitada. Circulou pelas ruas.
Um gramado verde continha lagartos de bronze entre flores, pareciam vivos. Saber que iria embora dava uma sensação de abandono, como se largasse a mulher amada. Aquele quarto no cinco-estrelas era seu lar agora. Tirou foto de tudo que pudesse lembrá-lo de Amsterdam depois. Bebeu até se entorpecer, sozinho e em contrariedade às próprias regras. Não se afogou num canal e voltou para o seu quarto. Tampouco despencou da janela do mesmo.
Ao acordar, recolheu suas coisas e foi para o aeroporto que os nazistas bombardearam durante a guerra. Fez do avião seu último ponto de hospedagem. Sabia que na volta seu romance iria acabar. Afundou na poltrona como se essa o tragasse, como se isso o pudesse defendê-lo das coisas que terminam.
Lembrou do quarto do hotel. Do roupão e da banheira. Do café da manhã. E da vendedora de flores. Pareciam ser as únicas coisas importantes em Amsterdam.
Tentou dormir enquanto as terras da Europa se afastavam e o avião pairava sobre o Atlântico.
Lembrava disso enquanto mastigava o pão sem sabor e tomava o leite quase azedo. Dois alemães, turistas também, dividiam uma mesa ao lado.
Em pouco tempo teria que deixar o hotel. Houve um problema com sua reserva. Sua agente de viagens, lá em casa, estava ligando para tudo quanto era lugar a fim de lhe conseguir um quarto. Confiava nela, iria conseguir outro lugar, apesar do feriado holandês.
Não havia o que fazer. Largaria as malas no depósito, iria até o centro e visitaria algum museu. Ligaria para casa mais tarde a fim de saber qual era o novo hotel. Voltaria ao hotel antigo e pegaria suas coisas. Aí começaria a nova fase de sua estada em Amsterdam. Esperava algo melhor, como prêmio pelo aborrecimento.
Um bonde o deixou perto do museu Van Gogh. Daria para o gasto. Olhou sem interesse as pinturas cercadas por multidões de turistas. Tinha vontade de ir embora, mas ao mesmo tempo não queria voltar à rua e ficar sem fazer nada, só esperando a hora de ligar para o Brasil e saber de seu destino. Era cedo. Ficaria.
Girassóis. Campos de trigo. Corvos num fundo amarelo e bege. Um quarto em Arles com suas parcas posses. Amigos. Muita cor. Quanta coisa viu o artista. Um dia ele cortou a própria orelha. Num outro ele resolveu cortar sua própria vida, com um revólver afiado. Seu irmão e marchand o seguiria à tumba alguns meses depois. C´est dommage, lamentariam seus conhecidos franceses.
E décadas depois, nesta mesma Amsterdam, um muçulmano maluco iria abater a tiros e a facadas um descendente dos Van Gogh, um diretor de cinema que portava o sobrenome famoso. Seu pecado foi criticar alguns de seus costumes bárbaros.
Após o almoço ligou para o Brasil. Uma boa notícia. Ficaria num hotel cinco estrelas, o Barbizon Palace, bem no centro. Longe das periferias de árabes. Justo o que esperava, um prêmio pelo aborrecimento de ter ficado sem-teto por algumas horas. Perguntou à agente se ele poderia pegar um táxi para o traslado, para poupar tempo. Claro que sim, ela o ressarciria.
Conforme o combinado, pegou o carro de aluguel. Um Mercedes dos bons o levou até o hotel antigo. O taxista não era falador. Ele próprio não estava a fim de conversa. Queria pegar as malas e ir logo para o hotel novo.
Apanhou sua bagagem em sua antiga hospedagem. Antes de ir embora teve vontade de mandar a recepcionista enjoada para os diabos: “Eu vou para o Barbizon, e você vai ficar aqui”. Deixou quieto.
De volta ao táxi, mais relaxado, conseguiu até falar um pouco com o taxista. Perguntou porque ele usava um Mercedes para o serviço de táxi. Ele disse que os carros para táxi na Holanda são baratos, e aquela marca dá menos gasto com peças. Muito justo.
Chega, enfim, ao Barbizon. Luxo e sofisticação. Um carregador leva sua bagagem ao quarto. Passam pelo concierge, que poderá lhe indicar o melhor de Amsterdam.
“O hotel tem piscina?”, pergunta ao carregador.
“Não, senhor, não tem”.
Deve ser por causa do frio. Não custava perguntar.
Larga uma gorjeta pela ajuda e entra em seu novo lar pelos próximos dias. Uma coletânea de brindes está na mesa da pia. Shampoo, sabonetes, até pasta de dentes, tudo personalizado com o nome do hotel. Atrás, uma banheira espaçosa.
Sobe uma pequena escada que separa o hall de entrada e o banheiro do quarto em si. Uma cama gigantesca, com um edredom bem convidativo.
Seria um desperdício aquilo só para ele. Pela primeira vez em algum tempo lembrou da namorada que largara em casa. Tentava não pensar muito, já que as coisas não andavam bem. Ela mal respondia seus telefonemas. Poderiam aproveitar aquilo muito, se ela tivesse topado ir junto. Paciência.
Havia um guia da cidade ao lado da TV. Um roupão branco de algodão o aguardava no armário. Isso é coisa de gente fina. Vestiu o roupão. Muito confortável. Deitou na cama e acabou adormecendo por uma hora, sem sonhar com nada.
Ao acordar estava a fim de um banho. Colocou a água para esquentar. Esperou a banheira encher lendo algumas páginas de um livro. Insinuou-se para a água morna e escorregou até afundar. Ficou ali por outra hora, até sentir os dedos murcharem, ao limite em que a fome era maior que o prazer que obtinha da água quente.
Enrolou-se no roupão e andou até a bancada, que aninhava o cardápio. Nenhuma mordomia seria completa sem pedir serviço de quarto. Pediu um sanduíche e um refrigerante.
Deitou-se para esperar e ligou a TV. Um canal inglês falava de uma menina sumida em Portugal. Mero seqüestro? Não era seu problema.
Sem agüentar ficar mais parado fuçou as coisas que estavam no quarto. Haviam três livros. A indefectível Bíblia, uma espécie de doutrina de Buda e um livro colorido sobre a cidade. “Amsterdam é uma cidade vibrante e cosmopolita”, dizia uma página do guia, em inglês. Outras anunciavam as atrações da cidade e relembravam sua história. A Era de Ouro holandesa. O Distrito da Luz Vermelha e suas mulheres nas vitrines.
Ligou para a namorada. Pelo fuso ela já estaria em casa. Ela tinha a voz fria e não queria muita conversa. Desligaram. Como dos outros dias, pensou que aquela viagem fora um erro. Mas não ligaria mais. Todo dia era o mesmo tratamento indiferente que ela lhe dava. Resolveriam na volta.
O sino toca. Era o serviço. Comeu sem muito entusiasmo e dormiu.
***
No dia seguinte desceu ao lobby de entrada. Numa das salas seria servido o café da manhã. Havia um piano de cauda ao fundo. Não sabia tocar nada. Foi até o instrumento e aprumou-se na banqueta. Estalou os dedos como um virtuose prestes a deslumbrar uma platéia ansiosa e dedilhou umas notas. Tocou o tema de James Bond, fá fá fá rá fá fá fá fá fá fá rá rá... Um funcionário do hotel se aproximou e pediu silêncio, todos dormiam, era domingo. A arte não é para todo instante...
O café prometia. Queijos importados. Pães. Bolos. Geléias. Ovos preparados de três maneiras. Panquecas. Waffles. Cereais. Até champagne era servido. Só não tomou uma taça por achar que beber sozinho é o primeiro passo para o alcoolismo. Não costumava comer muito ou ver prazer na comida, mas naquela manhã ele se fartou. Sentia-se poderoso.
Breve ida ao quarto para se preparar e o hóspede tomou as ruas. O Distrito da Luz Vermelha era logo ali.
Andou o dia todo e viu muitas coisas. Os olhos se cansaram de ver e os ouvidos de escutar. Um mar de gente e bicicletas, em meio aos bondes modernos e aos carros. Atravessar a rua era um desafio a todo minuto.
Circulou pelas ruas entre os canais. Viu igrejas e casas em barcos. O problema de viajar solo é não ter com quem comentar as coisas vistas.
Uma vendedora de flores chamou sua atenção pela beleza. Era a melhor coisa que vira na viagem. Cabelos loiros descendo pelo rosto, avental de moça do campo. Era até romântico. Flores, e uma beleza tão pura. Nem perdeu seu tempo. Não havia futuro. Não ficaria ali, e ela não iria com ele embora. Perguntou o preço de um vaso das típicas tulipas apenas para ouvir sua voz. Um timbre quase sonoro. Tentador.
Bem perto do hotel, na volta, uma placa num hotel lhe chamou sua atenção. Ela tinha o alto-relevo de um homem tocando trompete e uma mensagem do gênero em baixo:
“Nesse hotel, em 13 de maio de 1988, morreu Chet Baker. Sua música continuará para sempre”.
Já tinha ouvido falar dessa história. O trompetista e cantor gênio provavelmente ingeriu uma quantidade de letal de drogas ou álcool e despencou do segundo andar de um hotel. Aquele diante do seu. Se estivesse passando ali anos atrás, hospedado como agora no hotel vizinho, poderia ter visto a polícia chegando, e o corpo caído no chão, coberto por um lençol. Faria o sinal da cruz e entraria pesaroso em seu hotel, grato de não ser ele o corpo cercado de gente.
Voltou para o seu quarto pensando em Chet. Conhecia só uma música dele. “Let´s get lost. Let´s get lost in each other arms...” Talvez Chet também tenha sido um hóspede solitário, naquele hotel que foi sua última casa, e cuja calçada dura foi a última coisa que sentia na vida. O baque do concreto em sua cabeça cheia de música.
O hóspede se sentia só. Lembrou dos seus e de sua terra, deitado de roupão na cama. Ótimo que essa viagem estava acabando. Mas tinha que aproveitar aquela noite, sua última na Europa. Pegou um bonde e foi para uma região agitada. Circulou pelas ruas.
Um gramado verde continha lagartos de bronze entre flores, pareciam vivos. Saber que iria embora dava uma sensação de abandono, como se largasse a mulher amada. Aquele quarto no cinco-estrelas era seu lar agora. Tirou foto de tudo que pudesse lembrá-lo de Amsterdam depois. Bebeu até se entorpecer, sozinho e em contrariedade às próprias regras. Não se afogou num canal e voltou para o seu quarto. Tampouco despencou da janela do mesmo.
Ao acordar, recolheu suas coisas e foi para o aeroporto que os nazistas bombardearam durante a guerra. Fez do avião seu último ponto de hospedagem. Sabia que na volta seu romance iria acabar. Afundou na poltrona como se essa o tragasse, como se isso o pudesse defendê-lo das coisas que terminam.
Lembrou do quarto do hotel. Do roupão e da banheira. Do café da manhã. E da vendedora de flores. Pareciam ser as únicas coisas importantes em Amsterdam.
Tentou dormir enquanto as terras da Europa se afastavam e o avião pairava sobre o Atlântico.