O Oitavo Passo – parte 2 de 3
Isabela
Gabriel é alcoólatra e está há sessenta e dois dias sem beber. Segue o programa de Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos e está no Oitavo, que consiste em reparar os danos às pessoas que ofendeu. Seu plano era se reconciliar com duas ex-namoradas, Isabela e Letícia. A primeira conversa seria com Isabela, que morava em Guarulhos, na Grande São Paulo.
Saiu antes do horário de pico e chegou sem dificuldades em Guarulhos, pela Marginal. Eram quase seis horas da noite, iria demorar a escurecer, pelo horário de verão. Esperou no carro um pouco antes de tocar a campainha. Havia muito tempo que não voltava àquele bairro, tristemente familiar. Jurou um dia que nunca mais moraria ali. Sua antiga casa não era muito longe. Mas não tinha a menor vontade de revê-la.
Observou o movimento. Criava coragem. No meio da rua um menino magro empinava pipas driblando os fios elétricos. Do outro lado um bar já começava a receber os primeiros fregueses após o trabalho. Som de pagode logo começaria a escapar do local.
Guarulhos era apenas aquilo. Um gueto sem graça. Uma cidade-dormitório e industrial sem qualquer atrativo. Nunca mais.
Enfim, respirou fundo e tocou a campainha. Sons de passos dentro da casa. Qualquer um da família poderia atender a porta. Rezou para não ser o pai. A porta abre, era a irmã dela:
- Oi Cíntia.
- Gabriel? Nossa, tá vivo?
Trocam os protocolares dois beijinhos no rosto. Cíntia era parecida com a irmã. Ela o convida a entrar.
- O que você está fazendo aqui no bairro?
- Estava passando e resolvi ver sua irmã. Ela está aí?
- Ela está saindo do banho. Ah, olha ela aí...
Isabela se aproximava, esfregando uma toalha nos cabelos molhados. Pelo fim traumático que tiveram podia esperar até mesmo um tapa na cara. Ao contrário. Ela sorria, se aproximou e o beijou no rosto. O cheiro do mesmo sabonete barato.
- Gabriel! O que você está fazendo aqui?
- Vim dar uma olhada em você.
Cíntia pede licença e sai da sala. Isabela larga a toalha numa cadeira e começa a fazer o papel de anfitriã:
- Você aceita uma água?
- Não, obrigado. Escuta, vocês estão morando sozinhas? E seu pai? Sua mãe?
- Eles foram fazer compras. Voltam daqui a pouco.
Passam um tempo atualizando as informações sobre as respectivas famílias e conhecidos. Quem casou, quem saiu dali. Alguns amigos morreram, outros estavam presos. Isabela largou a faculdade, não conseguia mais pagar. E não, ela não estava namorando.
Deixou Isabela saber que estava casado, se é que ela não percebeu a aliança na mão esquerda. Gastaram quinze minutos nisso. Gabriel estava desconfortável. Sua missão aguardava, mas não queria falar de um assunto tão delicado ali. Os seus ex-sogros podiam voltar a qualquer momento. Isabela parecia ter superado tudo, mas não podia dizer o mesmo deles. As expectativas dos pais sempre são maiores.
- Isabela, tinha um negócio importante para lhe falar. O que você acha de dar uma volta no bairro?
- Beleza. Vamos.
Ela calçou uma sapatilha gasta. O mesmo mal-gosto, e a mesma falta de grana para algo melhor.
Circularam, a certa distância um do outro, pelas ruas humildes. Aquele bairro não mudava, alguns não sairiam nunca dali. As opções de vida para os homens eram os quatro C´s: construção, chão de fábrica, cadeia e cemitério.
Gabriel revelou seu intento, mas sem mencionar nada sobre os AA. Era uma questão anterior.
- Bom, Isabela. A gente não terminou de um jeito legal. Eu só queria acertar isso com você, por mais doloroso que seja. E pedir desculpas.
- Gab, você não precisa pedir desculpa por nada. Já foi, passou.
- Eu não queria revirar esse assunto. Mas quero que saiba que eu tenho uma razão para isso. Está no meu peito, e só você podia ouvir.
Queria falar para ela que a largou porque não a amava mais. Que sempre quis sair da periferia e nunca mais voltar. Que partiu o coração dela ao fazerem amor no último dia, uma hora antes dele chamá-la para uma conversa séria. Que era um cafajeste que dormiu com ela, nesse dia, apenas por ser homem, para poder possuí-la uma última vez.
Mas essas coisas não eram simples de dizer. Isabela o olhava com aqueles olhos grandes e castanhos de sempre. Havia algo no fundo deles. Ela parecia temer o que ele tinha a dizer. Provavelmente tinha medo que ele o lembrasse daquela tarde terrível, de muito choro, em que o coração dela e os sonhos de sair dali com ele um dia foram jogados no lixo. Em que ela se sentiu um pedaço de papel usado quando ele saiu de cima de seu corpo e anunciou que partia.
Gabriel percebeu então que não precisaria dizer tudo. A sua redenção e busca de paz com seus demônios não tinha que ser às custas de outros. Então disse:
- Isabela, desculpa por termos terminado daquele jeito. Não justifica, mas eu era muito novo. Você lembra de tudo o que se passou naquele dia, não?
A jovem já tinha lágrimas nos olhos, mas não chorava. Gabriel prosseguiu:
- Aquilo não tem desculpa. Mas espero que um dia você me perdoe. Você sabe o que aconteceu. E eu peço desculpa por tudo, tudo mesmo.
Isabela o abraçou:
- Eu já te perdoei há muito tempo. Agora a vida continua.
Gabriel a levou de volta à sua casa. Se abraçaram mais uma vez. Ela não chegou a chorar na sua frente, e entrou. Ficou sem saber se, atrás daquela porta, ela estaria no chão a soluçar, lembrando daquela tarde. Ela nem perguntou se ele ia pelo menos retomar a amizade ou visitar o bairro de vez em quando. Isabela sabia a resposta.
Enquanto dirigia de volta à São Paulo, rumo à casa de Letícia, foi entendendo que nunca se sentiu conectado àquele bairro humilde de Guarulhos, e à tudo que ele representava. Isabela era o bairro. Emblema das coisas que não mudam. Ficaria lá para sempre, plantada como uma árvore, à mercê dos acontecimentos. Ele a largou após fazerem amor simplesmente porque nunca havia se importado com ela ou seus sentimentos. Ela tinha esperanças de casamento. Ele jamais pensou nisso com ela.
Antes de sair do bairro aguardou o sinal vermelho abrir numa esquina, antes da Marginal. Havia outro bar ali perto, só há bares na periferia. Um monte de gente fugindo de si mesmos e de suas vidas duras. Tinha vontade de tomar um trago também, mas não podia. O dia 63 logo chegaria.
Era gozado. Andou tanto em sua vida. Conquistou uma profissão, uma esposa boa, um apartamento longe dali, esse carro. Mas um dos problemas típicos daquela cidade cheia de perdedores nunca o deixaria. Tinha que conter aquele demônio um dia de cada vez.
Isabela se tornou uma lembrança distante enquanto ele se aproximava da cidade. Ainda havia Letícia.
Gabriel é alcoólatra e está há sessenta e dois dias sem beber. Segue o programa de Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos e está no Oitavo, que consiste em reparar os danos às pessoas que ofendeu. Seu plano era se reconciliar com duas ex-namoradas, Isabela e Letícia. A primeira conversa seria com Isabela, que morava em Guarulhos, na Grande São Paulo.
Saiu antes do horário de pico e chegou sem dificuldades em Guarulhos, pela Marginal. Eram quase seis horas da noite, iria demorar a escurecer, pelo horário de verão. Esperou no carro um pouco antes de tocar a campainha. Havia muito tempo que não voltava àquele bairro, tristemente familiar. Jurou um dia que nunca mais moraria ali. Sua antiga casa não era muito longe. Mas não tinha a menor vontade de revê-la.
Observou o movimento. Criava coragem. No meio da rua um menino magro empinava pipas driblando os fios elétricos. Do outro lado um bar já começava a receber os primeiros fregueses após o trabalho. Som de pagode logo começaria a escapar do local.
Guarulhos era apenas aquilo. Um gueto sem graça. Uma cidade-dormitório e industrial sem qualquer atrativo. Nunca mais.
Enfim, respirou fundo e tocou a campainha. Sons de passos dentro da casa. Qualquer um da família poderia atender a porta. Rezou para não ser o pai. A porta abre, era a irmã dela:
- Oi Cíntia.
- Gabriel? Nossa, tá vivo?
Trocam os protocolares dois beijinhos no rosto. Cíntia era parecida com a irmã. Ela o convida a entrar.
- O que você está fazendo aqui no bairro?
- Estava passando e resolvi ver sua irmã. Ela está aí?
- Ela está saindo do banho. Ah, olha ela aí...
Isabela se aproximava, esfregando uma toalha nos cabelos molhados. Pelo fim traumático que tiveram podia esperar até mesmo um tapa na cara. Ao contrário. Ela sorria, se aproximou e o beijou no rosto. O cheiro do mesmo sabonete barato.
- Gabriel! O que você está fazendo aqui?
- Vim dar uma olhada em você.
Cíntia pede licença e sai da sala. Isabela larga a toalha numa cadeira e começa a fazer o papel de anfitriã:
- Você aceita uma água?
- Não, obrigado. Escuta, vocês estão morando sozinhas? E seu pai? Sua mãe?
- Eles foram fazer compras. Voltam daqui a pouco.
Passam um tempo atualizando as informações sobre as respectivas famílias e conhecidos. Quem casou, quem saiu dali. Alguns amigos morreram, outros estavam presos. Isabela largou a faculdade, não conseguia mais pagar. E não, ela não estava namorando.
Deixou Isabela saber que estava casado, se é que ela não percebeu a aliança na mão esquerda. Gastaram quinze minutos nisso. Gabriel estava desconfortável. Sua missão aguardava, mas não queria falar de um assunto tão delicado ali. Os seus ex-sogros podiam voltar a qualquer momento. Isabela parecia ter superado tudo, mas não podia dizer o mesmo deles. As expectativas dos pais sempre são maiores.
- Isabela, tinha um negócio importante para lhe falar. O que você acha de dar uma volta no bairro?
- Beleza. Vamos.
Ela calçou uma sapatilha gasta. O mesmo mal-gosto, e a mesma falta de grana para algo melhor.
Circularam, a certa distância um do outro, pelas ruas humildes. Aquele bairro não mudava, alguns não sairiam nunca dali. As opções de vida para os homens eram os quatro C´s: construção, chão de fábrica, cadeia e cemitério.
Gabriel revelou seu intento, mas sem mencionar nada sobre os AA. Era uma questão anterior.
- Bom, Isabela. A gente não terminou de um jeito legal. Eu só queria acertar isso com você, por mais doloroso que seja. E pedir desculpas.
- Gab, você não precisa pedir desculpa por nada. Já foi, passou.
- Eu não queria revirar esse assunto. Mas quero que saiba que eu tenho uma razão para isso. Está no meu peito, e só você podia ouvir.
Queria falar para ela que a largou porque não a amava mais. Que sempre quis sair da periferia e nunca mais voltar. Que partiu o coração dela ao fazerem amor no último dia, uma hora antes dele chamá-la para uma conversa séria. Que era um cafajeste que dormiu com ela, nesse dia, apenas por ser homem, para poder possuí-la uma última vez.
Mas essas coisas não eram simples de dizer. Isabela o olhava com aqueles olhos grandes e castanhos de sempre. Havia algo no fundo deles. Ela parecia temer o que ele tinha a dizer. Provavelmente tinha medo que ele o lembrasse daquela tarde terrível, de muito choro, em que o coração dela e os sonhos de sair dali com ele um dia foram jogados no lixo. Em que ela se sentiu um pedaço de papel usado quando ele saiu de cima de seu corpo e anunciou que partia.
Gabriel percebeu então que não precisaria dizer tudo. A sua redenção e busca de paz com seus demônios não tinha que ser às custas de outros. Então disse:
- Isabela, desculpa por termos terminado daquele jeito. Não justifica, mas eu era muito novo. Você lembra de tudo o que se passou naquele dia, não?
A jovem já tinha lágrimas nos olhos, mas não chorava. Gabriel prosseguiu:
- Aquilo não tem desculpa. Mas espero que um dia você me perdoe. Você sabe o que aconteceu. E eu peço desculpa por tudo, tudo mesmo.
Isabela o abraçou:
- Eu já te perdoei há muito tempo. Agora a vida continua.
Gabriel a levou de volta à sua casa. Se abraçaram mais uma vez. Ela não chegou a chorar na sua frente, e entrou. Ficou sem saber se, atrás daquela porta, ela estaria no chão a soluçar, lembrando daquela tarde. Ela nem perguntou se ele ia pelo menos retomar a amizade ou visitar o bairro de vez em quando. Isabela sabia a resposta.
Enquanto dirigia de volta à São Paulo, rumo à casa de Letícia, foi entendendo que nunca se sentiu conectado àquele bairro humilde de Guarulhos, e à tudo que ele representava. Isabela era o bairro. Emblema das coisas que não mudam. Ficaria lá para sempre, plantada como uma árvore, à mercê dos acontecimentos. Ele a largou após fazerem amor simplesmente porque nunca havia se importado com ela ou seus sentimentos. Ela tinha esperanças de casamento. Ele jamais pensou nisso com ela.
Antes de sair do bairro aguardou o sinal vermelho abrir numa esquina, antes da Marginal. Havia outro bar ali perto, só há bares na periferia. Um monte de gente fugindo de si mesmos e de suas vidas duras. Tinha vontade de tomar um trago também, mas não podia. O dia 63 logo chegaria.
Era gozado. Andou tanto em sua vida. Conquistou uma profissão, uma esposa boa, um apartamento longe dali, esse carro. Mas um dos problemas típicos daquela cidade cheia de perdedores nunca o deixaria. Tinha que conter aquele demônio um dia de cada vez.
Isabela se tornou uma lembrança distante enquanto ele se aproximava da cidade. Ainda havia Letícia.
1 Comments:
Oi Luiz,
Estou mto interessada no desfecho desta história. Ansiosa prá saber como será a conversa com Letícia......rs.
Guarde todo este material para a edição do seu futuro livro....tá bom demaisssssssss!!!
Abraço,
Rubia
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