Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

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Advogado, vive em São Paulo

quinta-feira, dezembro 13, 2007

O Oitavo Passo – Parte 1 de 3

Assuntos prefaciais

Gabriel estava há sessenta e dois dias sem beber. Cada dia sem álcool era uma pequena vitória, como diziam os Alcoólicos Anônimos. Não achava que tinha um problema tão grande assim com bebida, mas há alguns meses ele aderiu a caminhada pelo programa de Doze Passos dos AA.
O Primeiro Passo era o mais difícil, admitir que tinha um problema com álcool. Havia algo, mas não era uma tragédia. Nas reuniões confirmou a suspeita de que não estava tão mal assim. Havia ali gente que bateu o carro e matou amigos. Homens que espancaram a esposa. Um professor de medicina que perdeu tudo para a garrafa e habitou a rua com mendigos.
O seu próprio padrinho, um aposentado chamado Joel, quase esganou o próprio neto ao voltar do bar, após uma noite de bebedeira e sinuca. Estava há 3.931 dias sem beber, anos e anos. Era um exemplo.
O caso de Gabriel era mais de falta de sentido. O programa dos AA parecia interessante, iria torná-lo uma pessoa melhor. Não tinha nada a perder.
Estava um tanto afastado de Deus, o que tornou também duro adotar os passos seguintes. De que Deus estavam eles falando? Para facilitar, imaginou aquele Deus de barba branca, que às vezes era amor e por outras era colérico e vingativo, promotor de chacinas de filisteus e outros a Ele menores. Criou para essa divindade uma personalidade mais agradável. Voltou até a rezar.
Tinha já superado o Sétimo Passo, que tinha a vez com Deus e com suas próprias imperfeições, e começado o Oitavo, que, segundo a enxovalhada cartilha, que já lera tantas vezes, era : “Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados”.
A memória de muitas noites estava nos ralos e privadas de muitos e incontáveis banheiros de São Paulo afora. Deixou muito de si nas calçadas, no banco do carro e nos tapetes de casa. Nunca conseguiria se redimir perante aquele segurança que acertou na cabeça com uma lata, abrindo um corte fundo. Ou com gente desconhecida que fechou no trânsito com seu carro sem controle.
Havia gente próxima e ofensas que o álcool não apagou da memória. Essa parte foi até fácil. Suas intenções eram puras e sinceras. De joelhos suplicou perdão à sua velha mãe pelas grosserias e impropérios. Visitou amigos e ex-amigos e pediu desculpas. Aos prantos pediu à sua mulher as mais fortes apologias pelas noites mal-dormidas e dinheiro gasto com seu vício, e, principalmente, pela sua ausência de homem e marido.
De todas essas pessoas Gabriel recebeu amor e sentiu seu coração se aquecer. Às vezes, do fundo do poço, mãos amigas se estendem e oferecem redenção. Não que de todas tenha recebido uma recepção calorosa, mas preferiu acreditar nisso. Sabia que certas ofensas são imperdoáveis.
Hoje, Gabriel pensava. Tentava refazer seus passos. Já buscou se reconciliar com as pessoas mais prejudicadas no seu tempo de perdição. Mas algo não estava certo. Faltava alguma coisa. Não podia avançar ao passo seguinte sem saber.
Circulou de manhã pela cidade, tentando pensar no que era. E concluiu que percorrer o caminho era algo mais amplo. Cumprir o Oitavo Passo não era apenas se desculpar com gente prejudicada pelas bebedeiras, era mais. Englobava ofensas antes do álcool, antes da queda em desgraça.
Não lembrava de ofensas graves antes da descoberta terrível da garrafa, no tempo da faculdade. Não haviam grandes pecados anteriores. Ora, lógico que haviam, pecados originais. Chorou ao lembrar de duas ex-namoradas, e cujos corações despedaçou.
Isabela era de um bairro humilde de Guarulhos, sua cidade natal, da mesma origem, vizinha. Era moça simples, e que, diferente dele, jamais saíra da comunidade. Certo dia, quando lhe surgiu a chance de estudar na capital, ele a deixou, sem maiores explicações. Não queria se sentir preso a nada. Conquistou seu espaço e nunca mais voltou.
A outra era Letícia, e ainda morava em São Paulo. Era executiva de uma grande empresa. Largou ela pela sua esposa. Ou ela o largou, não lembra. Seu amor foi definhando e um dia morreu. Haviam ficado juntos por quatro anos, durante os estudos. Mas houve tempo para muitas ofensas.
Era antes dos exageros com álcool, mas tinha que se redimir.
Enquanto almoçava tomou a resolução. Chegaria em Guarulhos antes da hora do rush. Conversaria com Isabela, que já estaria em casa. Depois voltaria à São Paulo e acertaria as coisas com Letícia, que costumava chegar bem mais tarde. Não podia avisá-las, tinha que ser surpresa. Não sabia a reação que elas podiam ter.
Só esperava que o endereço delas ainda fosse o mesmo.

(continua)