Um domingo à australiana
Começava o domingo em Edimburgo, Escócia. Da minha cama na albergue contemplei minha mala acorrentada ao aquecedor. Nenhum sinal de arrombamento. Tinha esse trauma desde a última estada em quartos coletivos, quando ficara literalmente descalço graças aos préstimos de um mão-leve.
O plano era atravessar a Royal Mile até o Castelo de Edimburgo, a principal atração da cidade. Um australiano da mesma idade, de apelido Bill, que eu conhecera no dia anterior, e que também estava hospedado no meu quarto, iria junto.
Ele não estava em sua cama, e encontrei-o no corredor. Já estava pronto, com sua pequena mochila, que era tudo o que carregava nessa viagem. Nenhuma preocupação. Eu, ao contrário, até tinha prendido a minha mala para que ela não fugisse. E mais bagagem me aguardava em Londres, para quando voltasse de minha incursão ao norte britânico.
Fomos marchando pela avenida famosa, de olho nos prédios preservados. Meu inglês permitia a comunicação. Tomamos café rápido, de pé, com a refeição apoiada num muro. Era tão cedo que o castelo nem estava aberto.
Enquanto esperava fui perguntando sobre a Austrália. Fiquei com a impressão de que parecia o Brasil. Eles gostavam de surfe, rock e bebida, e o clima era como o nosso.
O castelo então abre seus portões. Os turistas acumulados entram. Circulamos pelas muralhas majestosas.
Muito a se ver. Britânico sabe fazer uma exposição. O museu sobre as guerras do século XX era de primeira. Bill conta que um ressentimento que os australianos guardam é a arapuca armada para eles em 1915, na localidade de Gallipolli, na Turquia, a maior derrota deles em combate. É até um feriado nacional. Nós no Brasil não temos uma grande derrota, vamos perdendo aos poucos, explico.
Muita gente se deu mal ali, presa e torturada. A única compensação é que a ração dos prisioneiros incluía uma dose diária de cerveja.
A lembrança sobre violência faz o australiano perguntar sobre o Brasil, se lá é muito perigoso. Limito-me a dizer que a coisa vai mal para nós. Falar dos detalhes é como estragar uma festa falando de doenças. Estava lá para esquecer um pouco disso.
Tiramos uma foto ao lado da mãe do todos os canhões, o Mons Meg. Disse que era para a posteridade registrar o encontro do 2º Batalhão de Caçadores do Brasil com a 1º Divisão Pára-Quedista da Austrália. Tropa de Elite.
Fora do castelo, vimos outras atrações. Entramos na Galeria Nacional da Escócia. Mas Bill não gostava de arte, e em dez minutos saiu do museu. Fiquei lá meia hora, mas também já estava farto de museus. E nunca gostei de deixar ninguém esperando.
Andamos até uma rua do outro lado do vale. A chuva nos faz achar abrigo num restaurante (e foi difícil achar um aberto). Após o almoço surge a conclusão de que já não havia o que fazer na cidade. No Brasil se iria à praia, se perto.
Perguntei o que se fazia aos domingos na Austrália. Ele respondeu:
- Lá se bebe.
Bebamos, então. A primeira parada foi num bar metido a besta. Nos deu pouco álcool pelas nossas parcas libras e saiu caro. Uma parada estratégica no albergue nos deu mais poder de fogo, com as carteiras que estavam no cofre.
Achamos um pub mais típico. Já eram cinco da tarde. Dois pints de cerveja depois a conversa já estava mais animada. Um jogo de futebol passava na TV. Perguntei a Bill sobre as mulheres na Austrália. Ele disse que eram boas, devolveu a pergunta, e teve a mesma resposta sobre o Brasil. Não entramos em detalhes, mas pude imaginar. Meninas de sotaque forte e bronzeadas. Eu fiquei tentado com as australianas, e acho que ele com as garotas de minha terra. A grama é mais verde no vizinho.
Eu conhecia uma expressão em inglês para o cara pegador, casanova, “Ladies Man” (Homem das mulheres). Seria Bill um “Ladies Man”, perguntei. Ele explicou que na Austrália eles chamam esse cara de “Panties Man” (Homem das calcinhas). Ri muito. Mas a modéstia o impediu de se classificar.
A fome chegava de novo. Pedi um prato típico escocês, o haggis e tatties, espécie de tripas de carneiro com batatas. Era ruim, mas comi mesmo assim.
Quis saber mais sobre a Nova Zelândia, ilha perto da terra dele. Há uma rivalidade, ele explicou. Pelo que entendi, é como a Argentina para nós. Bill conhecia muitas piadas, impublicáveis, sobre os ilhéus e suas ovelhas.
Enquanto me servia de mais um pint, uma senhora loira levanta da mesa ao lado, em que estava com um homem mais velho que ela, e anuncia a ele (e a todos do pub):
- Eu nunca mais vou ver você. So long!
E sai a mulher bufando pela porta do pub. Todos no bar se viram para o homem, que se afunda na cadeira e se esconde atrás da sua caneca de cerveja. Cinco minutos depois o assunto dos convivas já era outro. Mas eu prestei atenção no homem por um tempo. Os primeiros minutos de um fim de caso devem ser terríveis. Depressão total, se você gosta da pessoa. Parecia ser o caso. Meia hora depois ele também tomava o caminho da rua, sem ligar para a garoa que caía e que acompanhava seu estado de espírito.
Sendo a Escócia, chovia de novo. Pegamos guarda-chuvas emprestados no bar (o país é civilizado o bastante para isso) e fomos para outro pub. Haviam garotas lá, mas só ficamos olhando. Eu incitei Bill, o Panties Man, a abordá-las, solteiro que ele era, mas ainda lhe faltava coragem. Ou mais cerveja.
Eu já tinha passado os limites aceitáveis de álcool, mas Bill parecia um saco sem fundo. Outra mudança. Provamos as cervejas de outro lugar. Notei que já eram quase dez da noite. Metade do dia foi passado bebendo cerveja. Se fossemos respeitar a tradição do lugar e beber uísque já teríamos morrido. E a “água da vida” era até mais barata que cerveja.
Bill queria ir a um outro pub, com música ao vivo. Eu já não agüentava e voltei para o albergue. Desejei-lhe boa sorte. Invejei a sua disposição. Perguntei:
- Todo domingo é assim na Austrália?
- É sempre assim, man.
Na manhã seguinte a minha cabeça parecia maior do que era. Bill estava em sua cama. Ele estava acordado. Perguntei como foi. Ele estava prosa, e se gabou de ter conhecido uma garçonete de pub às três da manhã, que topou levá-lo para casa. “É isso aí, Panties Man”, trocei. Ele riu, e confessou que ela era feia e um pouco gorda.
Despedi-me de Bill. Eu tinha uma excursão para os lagos saindo em pouco tempo, e ele iria para Glasgow, ver a cidade de origem de seus ancestrais. Trocamos os endereços de e-mail e combinamos de um dia visitarmos os respectivos países. Talvez ele tope vir para cá ver a Copa do Mundo.
Fiquei imaginando um país que passa os domingos surfando e bebendo cerveja. Exceto pelo bronzeado, parecia pouco saudável.
Percebi que num domingo à australiana não se aprende muita coisa. Exceto os limites de uma ressaca e muitas piadas de neozelandês. Se um dia eu for à Austrália eu volto num vôo de sábado.
O plano era atravessar a Royal Mile até o Castelo de Edimburgo, a principal atração da cidade. Um australiano da mesma idade, de apelido Bill, que eu conhecera no dia anterior, e que também estava hospedado no meu quarto, iria junto.
Ele não estava em sua cama, e encontrei-o no corredor. Já estava pronto, com sua pequena mochila, que era tudo o que carregava nessa viagem. Nenhuma preocupação. Eu, ao contrário, até tinha prendido a minha mala para que ela não fugisse. E mais bagagem me aguardava em Londres, para quando voltasse de minha incursão ao norte britânico.
Fomos marchando pela avenida famosa, de olho nos prédios preservados. Meu inglês permitia a comunicação. Tomamos café rápido, de pé, com a refeição apoiada num muro. Era tão cedo que o castelo nem estava aberto.
Enquanto esperava fui perguntando sobre a Austrália. Fiquei com a impressão de que parecia o Brasil. Eles gostavam de surfe, rock e bebida, e o clima era como o nosso.
O castelo então abre seus portões. Os turistas acumulados entram. Circulamos pelas muralhas majestosas.
Muito a se ver. Britânico sabe fazer uma exposição. O museu sobre as guerras do século XX era de primeira. Bill conta que um ressentimento que os australianos guardam é a arapuca armada para eles em 1915, na localidade de Gallipolli, na Turquia, a maior derrota deles em combate. É até um feriado nacional. Nós no Brasil não temos uma grande derrota, vamos perdendo aos poucos, explico.
Muita gente se deu mal ali, presa e torturada. A única compensação é que a ração dos prisioneiros incluía uma dose diária de cerveja.
A lembrança sobre violência faz o australiano perguntar sobre o Brasil, se lá é muito perigoso. Limito-me a dizer que a coisa vai mal para nós. Falar dos detalhes é como estragar uma festa falando de doenças. Estava lá para esquecer um pouco disso.
Tiramos uma foto ao lado da mãe do todos os canhões, o Mons Meg. Disse que era para a posteridade registrar o encontro do 2º Batalhão de Caçadores do Brasil com a 1º Divisão Pára-Quedista da Austrália. Tropa de Elite.
Fora do castelo, vimos outras atrações. Entramos na Galeria Nacional da Escócia. Mas Bill não gostava de arte, e em dez minutos saiu do museu. Fiquei lá meia hora, mas também já estava farto de museus. E nunca gostei de deixar ninguém esperando.
Andamos até uma rua do outro lado do vale. A chuva nos faz achar abrigo num restaurante (e foi difícil achar um aberto). Após o almoço surge a conclusão de que já não havia o que fazer na cidade. No Brasil se iria à praia, se perto.
Perguntei o que se fazia aos domingos na Austrália. Ele respondeu:
- Lá se bebe.
Bebamos, então. A primeira parada foi num bar metido a besta. Nos deu pouco álcool pelas nossas parcas libras e saiu caro. Uma parada estratégica no albergue nos deu mais poder de fogo, com as carteiras que estavam no cofre.
Achamos um pub mais típico. Já eram cinco da tarde. Dois pints de cerveja depois a conversa já estava mais animada. Um jogo de futebol passava na TV. Perguntei a Bill sobre as mulheres na Austrália. Ele disse que eram boas, devolveu a pergunta, e teve a mesma resposta sobre o Brasil. Não entramos em detalhes, mas pude imaginar. Meninas de sotaque forte e bronzeadas. Eu fiquei tentado com as australianas, e acho que ele com as garotas de minha terra. A grama é mais verde no vizinho.
Eu conhecia uma expressão em inglês para o cara pegador, casanova, “Ladies Man” (Homem das mulheres). Seria Bill um “Ladies Man”, perguntei. Ele explicou que na Austrália eles chamam esse cara de “Panties Man” (Homem das calcinhas). Ri muito. Mas a modéstia o impediu de se classificar.
A fome chegava de novo. Pedi um prato típico escocês, o haggis e tatties, espécie de tripas de carneiro com batatas. Era ruim, mas comi mesmo assim.
Quis saber mais sobre a Nova Zelândia, ilha perto da terra dele. Há uma rivalidade, ele explicou. Pelo que entendi, é como a Argentina para nós. Bill conhecia muitas piadas, impublicáveis, sobre os ilhéus e suas ovelhas.
Enquanto me servia de mais um pint, uma senhora loira levanta da mesa ao lado, em que estava com um homem mais velho que ela, e anuncia a ele (e a todos do pub):
- Eu nunca mais vou ver você. So long!
E sai a mulher bufando pela porta do pub. Todos no bar se viram para o homem, que se afunda na cadeira e se esconde atrás da sua caneca de cerveja. Cinco minutos depois o assunto dos convivas já era outro. Mas eu prestei atenção no homem por um tempo. Os primeiros minutos de um fim de caso devem ser terríveis. Depressão total, se você gosta da pessoa. Parecia ser o caso. Meia hora depois ele também tomava o caminho da rua, sem ligar para a garoa que caía e que acompanhava seu estado de espírito.
Sendo a Escócia, chovia de novo. Pegamos guarda-chuvas emprestados no bar (o país é civilizado o bastante para isso) e fomos para outro pub. Haviam garotas lá, mas só ficamos olhando. Eu incitei Bill, o Panties Man, a abordá-las, solteiro que ele era, mas ainda lhe faltava coragem. Ou mais cerveja.
Eu já tinha passado os limites aceitáveis de álcool, mas Bill parecia um saco sem fundo. Outra mudança. Provamos as cervejas de outro lugar. Notei que já eram quase dez da noite. Metade do dia foi passado bebendo cerveja. Se fossemos respeitar a tradição do lugar e beber uísque já teríamos morrido. E a “água da vida” era até mais barata que cerveja.
Bill queria ir a um outro pub, com música ao vivo. Eu já não agüentava e voltei para o albergue. Desejei-lhe boa sorte. Invejei a sua disposição. Perguntei:
- Todo domingo é assim na Austrália?
- É sempre assim, man.
Na manhã seguinte a minha cabeça parecia maior do que era. Bill estava em sua cama. Ele estava acordado. Perguntei como foi. Ele estava prosa, e se gabou de ter conhecido uma garçonete de pub às três da manhã, que topou levá-lo para casa. “É isso aí, Panties Man”, trocei. Ele riu, e confessou que ela era feia e um pouco gorda.
Despedi-me de Bill. Eu tinha uma excursão para os lagos saindo em pouco tempo, e ele iria para Glasgow, ver a cidade de origem de seus ancestrais. Trocamos os endereços de e-mail e combinamos de um dia visitarmos os respectivos países. Talvez ele tope vir para cá ver a Copa do Mundo.
Fiquei imaginando um país que passa os domingos surfando e bebendo cerveja. Exceto pelo bronzeado, parecia pouco saudável.
Percebi que num domingo à australiana não se aprende muita coisa. Exceto os limites de uma ressaca e muitas piadas de neozelandês. Se um dia eu for à Austrália eu volto num vôo de sábado.
4 Comments:
Luiz,
Já me sinto acanhada de tecer tantos elogios a vc. Mas sou sincera sempre!! Gostaria que pudesse ver meu sorriso descontraído e feliz, qdo acabo de ler seus relatos. Vc contagia e me faz "estar lá". Sua espirituosidade é deliciosa....a última frase, deste conto, fechou com chave de ouro.
Continue escrevendo "leve e acessível"....rs....prefiro!!! Sou uma simples mortal....rs.
Abraços,
Rubia
Rubia, continue lendo sempre e comentando, não se reprima (como os Menudos). Quando eu for um escritor consagrado você poderá dizer que é minha amiga e ter desconto nos livros (rs)
Luiz,
Agora sim....ri muitooooooooo. Vc é ótimo. Convenceu-se que será um escritor de renome, não é?? Finalmente.....rs. E ainda terei vantagem na compra dos seus livros....adorei.....desde agora, obrigada!!
Claro que seremos amigos sempre. Se hj faço questão da sua amizade, já pensou daqui a alguns anos??? Brincadeira....rapaz!!
Abraços,
Rubia
Espero não ficar metido com meu súbito sucesso...
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