O Grande Tédio e o caderno de Cultura
Domingo. Vou ao Parque Burle Marx, aqui em São Paulo. Refúgio de verde em meio ao concreto. Anseio pelo cheiro de terra molhada e mato. Antevejo os esquilos furtivos cruzando as trilhas entre um trecho de bosque e outro.
Paro o carro junto ao meio-fio, perto do parque. Junto a um poste há uma mulher em seus trinta e poucos anos, segurando uma placa de um empreendimento imobiliário. É um dos trabalhos mais cruéis e inúteis já criados pelos homens de marketing da Paulistânia. Lembro de ter visto uma dessas moças, em Santos, tombar desmaiada após horas no sol forte. Cruel. E inútil. Será que alguém compra um imóvel por causa dessas placas?
Bom, a nossa heroína, guardiã perpétua da placa (pelo menos enquanto pago lanche e condução), estava lá, ao lado do carro, com absoluta cara de enfado, segurando seu estandarte (promessa de um lar com churrasqueira na varanda).
Oba, pensei. Ela parada ali espanta os bandidos, ficando involuntariamente de olho no carro. Troco-me. Roupas de frio, uma pasta e os jornais do dia ficam no banco de trás.
Faço meu passeio. Caminho. Aproveito a hora e o sol.
***
Volto ao carro. A moça ainda estava lá de pé, aguardando. Abaixo a cabeça num aceno, sem graça, e abro a porta. Ela me diz:
- Moço, você poderia me dar...
Lá vem. Não existe almoço grátis. Ela vai querer um troco por ter olhado o carro. Achei que fosse passar sem essa. O fim de frase foi surpreendente:
- ... o caderno de cultura?
Eu fico estupefato olhando para ela e depois reparo no banco de trás do carro. Aberto, destacando-se em meio à bagunça, estava o Caderno 2 – CULTURA do Estadão. Pego de surpresa, eu consigo apenas balbuciar uma desculpa:
- Puxa, é que eu não li nada...
- Está certo, moço. É que eu fico o dia inteiro aqui, sem fazer nada.
Um pensamento egoísta me ocorre. “Poxa, mas justo o de Cultura?”. Eu nem tinha tocado no jornal ainda. Tudo é tão interessante no jornal de domingo. Mas era preciso fazer algo. Posso ficar sem as novidades de Esportes. Ela aceitaria? Não custa perguntar:
- Desculpa, é que eu nem olhei o jornal ainda. Você quer o de Esportes?
- Não, obrigado, eu só queria o Cultura mesmo. – Na mesma hora eu lembro da música: “A gente não quer só comida...”
- Moça, mal mesmo. Fica para a próxima.
Dou a partida no carro e vou para casa. Ela ficaria lá o resto do dia, sem ler nada, até ser rendida por seu capataz. Ou seria feitor?
Só mais tarde um grande arrependimento me atingiria. Por que eu não dei a porcaria do caderno de Cultura para a moça da placa? Eu leio aquilo todo domingo, não tinha muito a perder.
Para ela faria diferença. Imaginem o aborrecimento de ficar o dia inteiro de pé, de olho numa placa inanimada. Não há nem o perigo de que ela escape ou seja furtada, para agitar um pouco as coisas.
Como na prisão, qualquer coisa te distrai. As pessoas que passam. Os carros na pista. As folhas das árvores ao vento. As sombras estranhas formadas no chão. Os bichos rastejando no solo. As aves no céu. Até o conteúdo de um banco de trás de um carro ao lado. E nesse banco, um caderno de Cultura novinho, falando de TV, livros, peças de teatro e filmes.
Provavelmente a moça da placa não tem dinheiro para ir no cinema, e a resenha de um filme talvez seja o mais próximo que ela chegará de um pouco de cultura ao vivo.
Pensar nisso me angustiava. O caderno de Cultura que eu folhearia sem interesse por quinze minutos seria um dia com um pouco mais de brilho para a moça da placa. Lembrei da Lista de Schindler, filme sobre o industrial que salvou milhares de judeus do nazismo. Lamentava ele, numa das cenas finais, ao fugir ainda com algumas posses: “Com esse carro eu poderia ter salvo mais dez pessoas. Com esse anel eu poderia ter salvo mais uma...”.
Ao jogar fora o jornal, no fim do dia, lamentei:
- Ah, esse caderno de Cultura poderia ter tirado aquela moça do tédio. Esse caderno de Economia serviria de assunto no ponto para aquele taxista sem clientes. A página de Esportes talvez evitasse a soneca daquele balconista da loja às moscas, e que lhe custou o emprego.
Olhei para o lixo uma última vez, preocupado com o Grande Tédio do mundo. São as longas tardes de domingo. Escurecia. O sol descia tímido entre as casas.
Paro o carro junto ao meio-fio, perto do parque. Junto a um poste há uma mulher em seus trinta e poucos anos, segurando uma placa de um empreendimento imobiliário. É um dos trabalhos mais cruéis e inúteis já criados pelos homens de marketing da Paulistânia. Lembro de ter visto uma dessas moças, em Santos, tombar desmaiada após horas no sol forte. Cruel. E inútil. Será que alguém compra um imóvel por causa dessas placas?
Bom, a nossa heroína, guardiã perpétua da placa (pelo menos enquanto pago lanche e condução), estava lá, ao lado do carro, com absoluta cara de enfado, segurando seu estandarte (promessa de um lar com churrasqueira na varanda).
Oba, pensei. Ela parada ali espanta os bandidos, ficando involuntariamente de olho no carro. Troco-me. Roupas de frio, uma pasta e os jornais do dia ficam no banco de trás.
Faço meu passeio. Caminho. Aproveito a hora e o sol.
***
Volto ao carro. A moça ainda estava lá de pé, aguardando. Abaixo a cabeça num aceno, sem graça, e abro a porta. Ela me diz:
- Moço, você poderia me dar...
Lá vem. Não existe almoço grátis. Ela vai querer um troco por ter olhado o carro. Achei que fosse passar sem essa. O fim de frase foi surpreendente:
- ... o caderno de cultura?
Eu fico estupefato olhando para ela e depois reparo no banco de trás do carro. Aberto, destacando-se em meio à bagunça, estava o Caderno 2 – CULTURA do Estadão. Pego de surpresa, eu consigo apenas balbuciar uma desculpa:
- Puxa, é que eu não li nada...
- Está certo, moço. É que eu fico o dia inteiro aqui, sem fazer nada.
Um pensamento egoísta me ocorre. “Poxa, mas justo o de Cultura?”. Eu nem tinha tocado no jornal ainda. Tudo é tão interessante no jornal de domingo. Mas era preciso fazer algo. Posso ficar sem as novidades de Esportes. Ela aceitaria? Não custa perguntar:
- Desculpa, é que eu nem olhei o jornal ainda. Você quer o de Esportes?
- Não, obrigado, eu só queria o Cultura mesmo. – Na mesma hora eu lembro da música: “A gente não quer só comida...”
- Moça, mal mesmo. Fica para a próxima.
Dou a partida no carro e vou para casa. Ela ficaria lá o resto do dia, sem ler nada, até ser rendida por seu capataz. Ou seria feitor?
Só mais tarde um grande arrependimento me atingiria. Por que eu não dei a porcaria do caderno de Cultura para a moça da placa? Eu leio aquilo todo domingo, não tinha muito a perder.
Para ela faria diferença. Imaginem o aborrecimento de ficar o dia inteiro de pé, de olho numa placa inanimada. Não há nem o perigo de que ela escape ou seja furtada, para agitar um pouco as coisas.
Como na prisão, qualquer coisa te distrai. As pessoas que passam. Os carros na pista. As folhas das árvores ao vento. As sombras estranhas formadas no chão. Os bichos rastejando no solo. As aves no céu. Até o conteúdo de um banco de trás de um carro ao lado. E nesse banco, um caderno de Cultura novinho, falando de TV, livros, peças de teatro e filmes.
Provavelmente a moça da placa não tem dinheiro para ir no cinema, e a resenha de um filme talvez seja o mais próximo que ela chegará de um pouco de cultura ao vivo.
Pensar nisso me angustiava. O caderno de Cultura que eu folhearia sem interesse por quinze minutos seria um dia com um pouco mais de brilho para a moça da placa. Lembrei da Lista de Schindler, filme sobre o industrial que salvou milhares de judeus do nazismo. Lamentava ele, numa das cenas finais, ao fugir ainda com algumas posses: “Com esse carro eu poderia ter salvo mais dez pessoas. Com esse anel eu poderia ter salvo mais uma...”.
Ao jogar fora o jornal, no fim do dia, lamentei:
- Ah, esse caderno de Cultura poderia ter tirado aquela moça do tédio. Esse caderno de Economia serviria de assunto no ponto para aquele taxista sem clientes. A página de Esportes talvez evitasse a soneca daquele balconista da loja às moscas, e que lhe custou o emprego.
Olhei para o lixo uma última vez, preocupado com o Grande Tédio do mundo. São as longas tardes de domingo. Escurecia. O sol descia tímido entre as casas.
7 Comments:
O pior é que na hora a gente não pensa, mas depois dá o maior remorso!
Olá Luiz,
A vida é uma eterna escola....vc ainda é jovem....tem muito que aprender, como todos nós!!
Gostei da sua sinceridade.....reflexões assim nos tornam melhores e mais sensíveis. Tenho certeza que de uma próxima vez, será diferente. Quem sabe irá "oferecer" o caderno de cultura??? rs...rs.
Abraços,
Rubia
Sou meio lento, tenho o que se chama de "espírito da escada", só tenho a resposta certa tarde, ao subir as escadas de noite (vi isso num filme do Scola, Concorrência Desleal).
NOSSA!!!Muito interessante....que saudade... não fique tanto tempo sem escrever...senti uma falta danada, já tinha entrado diversas vezes e nada...mas
valeu a pena esperar,
Beijos,
Ivani
Luiz, suas crônicas são ótimas.
Um abraço.
Oi Guilherme, tudo bom?
Como vão as coisas?
Escreva-me um e-mail com as novidades, abraço.
Otima crônica.
parabéns.
Aline Gueler
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