Água da torneira
Sempre parece que a nossa época é menos interessantes que as outras. As gerações que me antecederam viram eventos fantásticos na vida deste país e do mundo. Fico às vezes com a sensação de que não verei ou sequer vi coisa igual.
Meus avôs testemunharam a Segunda Guerra Mundial e a morte do Getúlio. Meus pais viram a morte do Kennedy, o Vietnã, o homem chegando na Lua, o tricampeonato na Copa de 1970.
Injustiça comigo mesmo. Claro que viu muita coisa. É só deixar os olhos e ouvidos abertos, e lembrar.
Bom, eu assisti a um videogame chamado Guerra do Golfo. Era apenas um monte de riscos brancos numa tela verde de visão noturna e barulho de bombas, distraindo-nos do tédio de uma noite chuvosa em Ubatuba. Não é muito material para reminiscências.
Melhor tentar resgatar do fundo das memórias então uma daquelas perguntas clássicas. O que você estava fazendo no dia em que...?
No 11 de Setembro? Bom, quando me contaram eu estava assistindo aula na faculdade. Depois eu fui cortar cabelo e assisti na TV do salão o que tinha acontecido. Muito banal, se eu insistir nisso a crônica acaba aqui e o leitor foge. Todos tem histórias mais legais sobre esse dia.
Vamos mais para trás.
E nas Diretas Já? Onde eu estava? Desculpem, não lembro de nada disso, era muito pequeno.
E a morte do Tancredo Neves? Em abril de 1985.
Bom, acho dá para tirar algo daí.
Era um dos primeiros dias no meu primeiro ano no primeiro grau, o que chamam hoje de ensino fundamental. Saíra da pré-escola. Agora eu era um dos menores na escola inteira. Haviam dez turmas com alunos mais velhos que eu.
Havia uma espécie de hierarquia falsa entre os mais velhos e os mais novos que o tempo se encarregaria de mostrar inexistente. Eles podiam apanhar e bater de forma igual, e os mais velhos podiam chorar também.
Eu morava perto do Jardim, e agora eu tinha que ir de perua para a escola.
Nos primeiros dias você tateia, você anda pelos cantos, buscando um canto seguro.
Muitas novidades. A escola se reunia de tempos em tempos, todos os alunos perfilados, e cantava-se o Hino Nacional e o Hino da Escola. O Hino Nacional eu até entendia a razão pela qual o entoávamos, e gostava de alguns trechos. “Nem teme quem te adora a própria morte”, o “lábaro estrelado”, “clava forte da Justiça”, e tudo o mais.
Mas o Hino da Escola não me descia. Esse eu só fingia que cantava.
O uniforme era novo, de outra cor, diferente do uniforme do Jardim em que eu estudara. Tabuada era novidade também.
Mas o que mais me havia me surpreendido era a torneira na qual bebíamos água no intervalo.
No Jardim a água era limitada, servida em canecas, cada aluno tinha uma. Já na escola cada um se servia a vontade da água que quisesse. E bebíamos água à beça, já que Santos sempre foi muito quente.
Eu reclinava a cabeça na torneira e bebia até que me sentisse empapuçar, o uniforme úmido dos respingos. O calor fazia com que suássemos aquela água toda.
Fazíamos até concursos de quem conseguia beber mais água. Falava-se que um lendário aluno havia bebido um litro de uma só vez. Tentávamos superá-lo, mas isso só enchia nossas bexigas, que tinham que ser esvaziadas, o que nos levava a enfrentar o tenebroso banheiro, assombrado pela fantasmagórica Loira do Banheiro. Parece que os meninos contam até hoje essa história, em tudo quanto é colégio por aí.
Em casa eu assistia à TV e escutava meio por alto que o Presidente Tancredo estava doente e internado num hospital.
Até que logo depois veio a notícia, Tancredo havia morrido. Que comoção! Só se falava disso. Um muro amanheceu pichado em Santos, perto de casa: “A Chevrolet matou Tancredo”. Nunca entendi. Porque uma fabricante de carros mataria alguém. Ele nem tinha sido atropelado...
Nos dias seguintes um ou outro falava do assunto, cochichando durante a aula, sem se dar conta da importância histórica daquilo. O Presidente estava morto. Mas chegavam os intervalos, e as filas para as torneiras estavam especialmente concorridas. Muito calor naqueles dias.
Minha vez chegava e eu enfiava a cabeça embaixo da torneira, tentanto engolir o que eu pudesse. O uniforme encharcava. Tudo ficava menos quente.
Logo esqueceríamos de Tancredo. Eu só mais tarde viria a entender o que era um Presidente.
Meus avôs testemunharam a Segunda Guerra Mundial e a morte do Getúlio. Meus pais viram a morte do Kennedy, o Vietnã, o homem chegando na Lua, o tricampeonato na Copa de 1970.
Injustiça comigo mesmo. Claro que viu muita coisa. É só deixar os olhos e ouvidos abertos, e lembrar.
Bom, eu assisti a um videogame chamado Guerra do Golfo. Era apenas um monte de riscos brancos numa tela verde de visão noturna e barulho de bombas, distraindo-nos do tédio de uma noite chuvosa em Ubatuba. Não é muito material para reminiscências.
Melhor tentar resgatar do fundo das memórias então uma daquelas perguntas clássicas. O que você estava fazendo no dia em que...?
No 11 de Setembro? Bom, quando me contaram eu estava assistindo aula na faculdade. Depois eu fui cortar cabelo e assisti na TV do salão o que tinha acontecido. Muito banal, se eu insistir nisso a crônica acaba aqui e o leitor foge. Todos tem histórias mais legais sobre esse dia.
Vamos mais para trás.
E nas Diretas Já? Onde eu estava? Desculpem, não lembro de nada disso, era muito pequeno.
E a morte do Tancredo Neves? Em abril de 1985.
Bom, acho dá para tirar algo daí.
Era um dos primeiros dias no meu primeiro ano no primeiro grau, o que chamam hoje de ensino fundamental. Saíra da pré-escola. Agora eu era um dos menores na escola inteira. Haviam dez turmas com alunos mais velhos que eu.
Havia uma espécie de hierarquia falsa entre os mais velhos e os mais novos que o tempo se encarregaria de mostrar inexistente. Eles podiam apanhar e bater de forma igual, e os mais velhos podiam chorar também.
Eu morava perto do Jardim, e agora eu tinha que ir de perua para a escola.
Nos primeiros dias você tateia, você anda pelos cantos, buscando um canto seguro.
Muitas novidades. A escola se reunia de tempos em tempos, todos os alunos perfilados, e cantava-se o Hino Nacional e o Hino da Escola. O Hino Nacional eu até entendia a razão pela qual o entoávamos, e gostava de alguns trechos. “Nem teme quem te adora a própria morte”, o “lábaro estrelado”, “clava forte da Justiça”, e tudo o mais.
Mas o Hino da Escola não me descia. Esse eu só fingia que cantava.
O uniforme era novo, de outra cor, diferente do uniforme do Jardim em que eu estudara. Tabuada era novidade também.
Mas o que mais me havia me surpreendido era a torneira na qual bebíamos água no intervalo.
No Jardim a água era limitada, servida em canecas, cada aluno tinha uma. Já na escola cada um se servia a vontade da água que quisesse. E bebíamos água à beça, já que Santos sempre foi muito quente.
Eu reclinava a cabeça na torneira e bebia até que me sentisse empapuçar, o uniforme úmido dos respingos. O calor fazia com que suássemos aquela água toda.
Fazíamos até concursos de quem conseguia beber mais água. Falava-se que um lendário aluno havia bebido um litro de uma só vez. Tentávamos superá-lo, mas isso só enchia nossas bexigas, que tinham que ser esvaziadas, o que nos levava a enfrentar o tenebroso banheiro, assombrado pela fantasmagórica Loira do Banheiro. Parece que os meninos contam até hoje essa história, em tudo quanto é colégio por aí.
Em casa eu assistia à TV e escutava meio por alto que o Presidente Tancredo estava doente e internado num hospital.
Até que logo depois veio a notícia, Tancredo havia morrido. Que comoção! Só se falava disso. Um muro amanheceu pichado em Santos, perto de casa: “A Chevrolet matou Tancredo”. Nunca entendi. Porque uma fabricante de carros mataria alguém. Ele nem tinha sido atropelado...
Nos dias seguintes um ou outro falava do assunto, cochichando durante a aula, sem se dar conta da importância histórica daquilo. O Presidente estava morto. Mas chegavam os intervalos, e as filas para as torneiras estavam especialmente concorridas. Muito calor naqueles dias.
Minha vez chegava e eu enfiava a cabeça embaixo da torneira, tentanto engolir o que eu pudesse. O uniforme encharcava. Tudo ficava menos quente.
Logo esqueceríamos de Tancredo. Eu só mais tarde viria a entender o que era um Presidente.