Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

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Advogado, vive em São Paulo

terça-feira, julho 21, 2009

Água da torneira

Sempre parece que a nossa época é menos interessantes que as outras. As gerações que me antecederam viram eventos fantásticos na vida deste país e do mundo. Fico às vezes com a sensação de que não verei ou sequer vi coisa igual.
Meus avôs testemunharam a Segunda Guerra Mundial e a morte do Getúlio. Meus pais viram a morte do Kennedy, o Vietnã, o homem chegando na Lua, o tricampeonato na Copa de 1970.
Injustiça comigo mesmo. Claro que viu muita coisa. É só deixar os olhos e ouvidos abertos, e lembrar.
Bom, eu assisti a um videogame chamado Guerra do Golfo. Era apenas um monte de riscos brancos numa tela verde de visão noturna e barulho de bombas, distraindo-nos do tédio de uma noite chuvosa em Ubatuba. Não é muito material para reminiscências.
Melhor tentar resgatar do fundo das memórias então uma daquelas perguntas clássicas. O que você estava fazendo no dia em que...?
No 11 de Setembro? Bom, quando me contaram eu estava assistindo aula na faculdade. Depois eu fui cortar cabelo e assisti na TV do salão o que tinha acontecido. Muito banal, se eu insistir nisso a crônica acaba aqui e o leitor foge. Todos tem histórias mais legais sobre esse dia.
Vamos mais para trás.
E nas Diretas Já? Onde eu estava? Desculpem, não lembro de nada disso, era muito pequeno.
E a morte do Tancredo Neves? Em abril de 1985.
Bom, acho dá para tirar algo daí.
Era um dos primeiros dias no meu primeiro ano no primeiro grau, o que chamam hoje de ensino fundamental. Saíra da pré-escola. Agora eu era um dos menores na escola inteira. Haviam dez turmas com alunos mais velhos que eu.
Havia uma espécie de hierarquia falsa entre os mais velhos e os mais novos que o tempo se encarregaria de mostrar inexistente. Eles podiam apanhar e bater de forma igual, e os mais velhos podiam chorar também.
Eu morava perto do Jardim, e agora eu tinha que ir de perua para a escola.
Nos primeiros dias você tateia, você anda pelos cantos, buscando um canto seguro.
Muitas novidades. A escola se reunia de tempos em tempos, todos os alunos perfilados, e cantava-se o Hino Nacional e o Hino da Escola. O Hino Nacional eu até entendia a razão pela qual o entoávamos, e gostava de alguns trechos. “Nem teme quem te adora a própria morte”, o “lábaro estrelado”, “clava forte da Justiça”, e tudo o mais.
Mas o Hino da Escola não me descia. Esse eu só fingia que cantava.
O uniforme era novo, de outra cor, diferente do uniforme do Jardim em que eu estudara. Tabuada era novidade também.
Mas o que mais me havia me surpreendido era a torneira na qual bebíamos água no intervalo.
No Jardim a água era limitada, servida em canecas, cada aluno tinha uma. Já na escola cada um se servia a vontade da água que quisesse. E bebíamos água à beça, já que Santos sempre foi muito quente.
Eu reclinava a cabeça na torneira e bebia até que me sentisse empapuçar, o uniforme úmido dos respingos. O calor fazia com que suássemos aquela água toda.
Fazíamos até concursos de quem conseguia beber mais água. Falava-se que um lendário aluno havia bebido um litro de uma só vez. Tentávamos superá-lo, mas isso só enchia nossas bexigas, que tinham que ser esvaziadas, o que nos levava a enfrentar o tenebroso banheiro, assombrado pela fantasmagórica Loira do Banheiro. Parece que os meninos contam até hoje essa história, em tudo quanto é colégio por aí.
Em casa eu assistia à TV e escutava meio por alto que o Presidente Tancredo estava doente e internado num hospital.
Até que logo depois veio a notícia, Tancredo havia morrido. Que comoção! Só se falava disso. Um muro amanheceu pichado em Santos, perto de casa: “A Chevrolet matou Tancredo”. Nunca entendi. Porque uma fabricante de carros mataria alguém. Ele nem tinha sido atropelado...
Nos dias seguintes um ou outro falava do assunto, cochichando durante a aula, sem se dar conta da importância histórica daquilo. O Presidente estava morto. Mas chegavam os intervalos, e as filas para as torneiras estavam especialmente concorridas. Muito calor naqueles dias.
Minha vez chegava e eu enfiava a cabeça embaixo da torneira, tentanto engolir o que eu pudesse. O uniforme encharcava. Tudo ficava menos quente.
Logo esqueceríamos de Tancredo. Eu só mais tarde viria a entender o que era um Presidente.

sábado, julho 04, 2009

O homem na frente do tanque

Correu mundo a imagem de um jovem chinês que, em meio aos protestos da praça da Paz Celestial, Pequim, ocorridos em 1989, desafiou a repressão comunista e bailou diante de uma coluna de tanques, detendo sua marcha.
Entretanto, é pouco sabido dos brasileiros que na semana passada um compatriota nosso, um verdadeiro gigante, que igualmente bailou na frente dos tanques, deixou este nosso mundo.
Goffredo da Silva Telles Jr., professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, numa noite de 1977, em plena ditadura militar, leu no pátio da Faculdade um documento chamado Carta aos Brasileiros. Nele, Goffredo pedia a volta do Estado de Direito ao país.
Com a leitura da Carta Goffredo ficou sujeito a ser sequestrado, torturado, a virar desaparecido. Ajudou a tirar a legitimidade da ditadura, apoiada por juristas de menor estirpe. Foi uma tremenda ousadia e ato de destemor físico. Comparável a bailar na frente de um tanque.
Goffredo morreu sábado, dia 27 de junho de 2009.
A notícia, dada a este povo sem memória, ficou ofuscada pelos desdobramentos de outra morte , a de um cantor e bailarino americano, muito mais famoso (ou infame). Que nunca bailou na frente de tanque nenhum.