Polícia Secreta
Já era meu quinto dia de férias em Berlim, Alemanha, e o que era anunciado aconteceu. Eu e minha querida chegamos num impasse. Nossos caminhos iriam se separar. Antes que o leitor pense que narrarei um caso de amor que chega ao fim, é bom que eu explique o que se passou. Eu queria um programa mais cultural, e ela queria fazer compras. Só.
Então, nos separamos. Ela ficou numa avenida de grandes magazines e lojas. E eu estava livre para procurar um museu ou exposição interessante.
Peguei o U-Bahn, o metrô deles, e decidi ver algo do lado oriental da cidade, talvez um ponto histórico relacionado ao período de trevas totalitário. O guia de viagem dizia que, numa daquelas estações, existia um museu sobre a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, terrível máquina de controle dos comunistas.
Uma caminhada após o desembarque do trem me leva até um prédio de aparência absolutamente ordinária. Não parecia ser ali. A dona de um quiosque de salsichas confirma que é lá mesmo. Visto do lobby, o lugar ainda não parece um museu. Pago a entrada e recebo um folheto do caixa, um senhor que parece meio espantado com a presença de um visitante.
Enquanto subo a escada ao andar seguinte, onde começava a exposição, tento absorver o máximo de informações do folheto. O prédio foi o quartel-general da Stasi, sigla do Ministério de Segurança chefiado por Erich Mielke, um militante comunista guindado ao poder pelos soviéticos após a Segunda Guerra Mundial. Esse departamento do poder da Alemanha Oriental era tão secreto que ninguém da população em geral sabia onde era sua sede, um centro nervoso do terror, de onde essa mesma população era controlada e vigiada. Para um transeunte, ali se tratava de um mero edifício residencial, marrom, opaco e imperceptível.
Circulo pelas salas. Numa haviam diversos objetos cotidianos transformados em aparelhos de espionagem. O guarda-chuva microfone. O cinzeiro que captava conversas. O chapéu com máquina fotográfica. Tudo muito James Bond.
Uma outra sala exibia típicas bandeiras socialistas, com martelo e foice, flâmulas e estátuas. Ao centro, o principal estandarte continha os rostos de três barbudos. Reconheci Marx e Lênin, os pais daquela desgraça toda. Se o melhor que o comunismo podia fazer de propaganda estava naquele cômodo, é fácil entender porque acabou. É muito sem graça e limitado. O capitalismo é mais criativo e colorido. Nossos ídolos são mais legais, até mesmo a Paris Hilton vence essas múmias antiquadas.
Passei em seguida para uma sala de reuniões preservada. Uma mesa como de jantar, comprida. Um busto de Lênin, sempre ele, num canto. E um painel com um mapa das então duas Alemanhas na parede, e que podia ser escondido com dois anteparos de madeira. Típica coisa de filme de espião dos anos 60. Só faltava um vilão (Erich Mielke?) na cabeceira da mesa, dando uma gargalhada, apontando o mapa e dizendo que iria conquistar o mundo.
A sala seguinte era a do próprio chefe da polícia secreta. Sua mesa com telefone. Um cofre permitia que ele escondesse seus segredos ali mesmo. Deu uma raiva daquele homem, que destruiu a vida de tanta gente, mas que teve poder e provavelmente uma vida bem confortável.
Antes de ir embora, fico sabendo que após a queda do Muro de Berlim, a casa caiu para Mielke. O bom povo alemão não deixaria barato aquela repressão toda. Na impossibilidade julgá-lo por fatos ocorridos nos tempos de comunismo, a Justiça alemã buscou uma saída. A velhice de Erich foi importunada com um processo criminal pelo assassinato de dois policiais ocorridos na década de 20, e até então impunes. O déspota passou uns anos na cadeia e morreu sabendo que ele e seu regime estavam no lixo da História.
Pego o metrô de volta. Planejo descer em outra estação e ver uma rua chamada Karl Marx Alle, anunciada pelo guia como um exemplar do estilo arquitetônico soviético. Fico curioso.
Já dentro do trem, no meio da viagem, percebo uma movimentação estranha. Dois sujeitos que pareciam passageiros pediam licença em meio à multidão, pedindo os bilhetes de todos. São prontamente obedecidos. Sinto um calafrio e entrego o meu. Eles o examinam e me dizem em inglês que meu ticket não estava validado. Sou convidado a descer da composição.
Na plataforma eles me interrogam. Um deles é magro e mais sério. Outro é um gordinho mais paciente e simpático. São da segurança do metrô. Eles me explicam que meu bilhete é de três dias, mas deveria ter sido validado na entrada da estação. Não existem catracas em nenhuma parada do metrô berlinense.
Digo que havia comprado meu bilhete no hotel (o que era verdade) e que não sabia que ele deveria ter sido validado (em termos – eu queria que o bilhete durasse pelo menos o meu tempo de estada em Berlim). O gordinho pergunta de onde sou. Eu mostro o passaporte brasileiro. Pergunta se eu falo alemão. Digo em inglês que não. Ele explica que é normal não saber das regras, complicadas para quem é de fora. Mas o problema é que meu bilhete era de fevereiro, e estávamos em maio. Eu poderia estar usando ele desde o começo do ano. O agente magro, enquanto isso, ficava no telefone, e percebi que falava com seus superiores do meu caso. Isso me deixava nervoso, e eu tentei disfarçar.
Como é que a segurança do metrô andava à paisana? Esperava gente uniformizada.
Perguntei ao gordinho:
- Vocês são da segurança do metrô?
- Ah, claro, desculpe. – Ele exibiu uma credencial pendurada no cinto.
O agente magro continuava às voltas com seus superiores. O gordinho aguardava instruções do colega, mas era simpático o suficiente para puxar assunto comigo, perguntando sobre o Brasil, talvez para quebrar o gelo. A situação era meio tensa.
Antes que o agente magro desligasse, lembrei de algo que podia me salvar:
- Eu não estou usando o bilhete desde fevereiro, é impossível. Cheguei aqui há quatro dias. Olhem meu passaporte.
O gordinho verifica que de fato desci em Frankfurt na data alegada. Conversa com o colega, que desliga o telefone. Eles concluem que estou de boa-fé, e o gordinho adverte:
- Olha, deveríamos lhe dar uma multa. Mas vamos levar você até a entrada da estação, o senhor valida o bilhete e pode voltar ao trem. E você já sabe a regra agora. Dito e feito, após eles me levarem até a máquina de validar, eles partem, intrépidos, em busca de outras fraudes no metrô.
Desço na estação da Karl Marx Alle já sem muita vontade de passear. Sento num café, ainda um pouco nervoso, e olho os prédios padronizados na mesma altura e estilo. Lembrava Brasília.
Pensava naquela tarde. À primeira vista, parecia estranha aquela queda pelo segredo, com agentes do metrô dando “incertas” em busca de passageiros fantasmas. Depois pareceu lógico. É um sistema de confiança, sem catracas. Todos tinham bilhetes, e ai de quem não tivesse, paga multa. Se eles usassem uniformes, não pegariam ninguém. Eles devem ter aprendido isso com o pessoal do lado oriental.
Não poderia imaginar, mas fui alvo de técnicas da finada Stasi.
Mais tarde entendi tudo. Se eles não deixaram nem o velho Erich Mielke em paz, aborrecendo-o com um processo por um crime de 70 anos atrás, porque deixariam escapar quem quer andar de metrô de graça?
Lembrar nessa hora de meu país, com sua Justiça lenta e incerta, com suas chacinas e latrocínios, seus traficantes e políticos, só me deixava pior. Que diferença desta Alemanha! Só torcia para que as compras de minha mulher tivessem sido boas.
Então, nos separamos. Ela ficou numa avenida de grandes magazines e lojas. E eu estava livre para procurar um museu ou exposição interessante.
Peguei o U-Bahn, o metrô deles, e decidi ver algo do lado oriental da cidade, talvez um ponto histórico relacionado ao período de trevas totalitário. O guia de viagem dizia que, numa daquelas estações, existia um museu sobre a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, terrível máquina de controle dos comunistas.
Uma caminhada após o desembarque do trem me leva até um prédio de aparência absolutamente ordinária. Não parecia ser ali. A dona de um quiosque de salsichas confirma que é lá mesmo. Visto do lobby, o lugar ainda não parece um museu. Pago a entrada e recebo um folheto do caixa, um senhor que parece meio espantado com a presença de um visitante.
Enquanto subo a escada ao andar seguinte, onde começava a exposição, tento absorver o máximo de informações do folheto. O prédio foi o quartel-general da Stasi, sigla do Ministério de Segurança chefiado por Erich Mielke, um militante comunista guindado ao poder pelos soviéticos após a Segunda Guerra Mundial. Esse departamento do poder da Alemanha Oriental era tão secreto que ninguém da população em geral sabia onde era sua sede, um centro nervoso do terror, de onde essa mesma população era controlada e vigiada. Para um transeunte, ali se tratava de um mero edifício residencial, marrom, opaco e imperceptível.
Circulo pelas salas. Numa haviam diversos objetos cotidianos transformados em aparelhos de espionagem. O guarda-chuva microfone. O cinzeiro que captava conversas. O chapéu com máquina fotográfica. Tudo muito James Bond.
Uma outra sala exibia típicas bandeiras socialistas, com martelo e foice, flâmulas e estátuas. Ao centro, o principal estandarte continha os rostos de três barbudos. Reconheci Marx e Lênin, os pais daquela desgraça toda. Se o melhor que o comunismo podia fazer de propaganda estava naquele cômodo, é fácil entender porque acabou. É muito sem graça e limitado. O capitalismo é mais criativo e colorido. Nossos ídolos são mais legais, até mesmo a Paris Hilton vence essas múmias antiquadas.
Passei em seguida para uma sala de reuniões preservada. Uma mesa como de jantar, comprida. Um busto de Lênin, sempre ele, num canto. E um painel com um mapa das então duas Alemanhas na parede, e que podia ser escondido com dois anteparos de madeira. Típica coisa de filme de espião dos anos 60. Só faltava um vilão (Erich Mielke?) na cabeceira da mesa, dando uma gargalhada, apontando o mapa e dizendo que iria conquistar o mundo.
A sala seguinte era a do próprio chefe da polícia secreta. Sua mesa com telefone. Um cofre permitia que ele escondesse seus segredos ali mesmo. Deu uma raiva daquele homem, que destruiu a vida de tanta gente, mas que teve poder e provavelmente uma vida bem confortável.
Antes de ir embora, fico sabendo que após a queda do Muro de Berlim, a casa caiu para Mielke. O bom povo alemão não deixaria barato aquela repressão toda. Na impossibilidade julgá-lo por fatos ocorridos nos tempos de comunismo, a Justiça alemã buscou uma saída. A velhice de Erich foi importunada com um processo criminal pelo assassinato de dois policiais ocorridos na década de 20, e até então impunes. O déspota passou uns anos na cadeia e morreu sabendo que ele e seu regime estavam no lixo da História.
Pego o metrô de volta. Planejo descer em outra estação e ver uma rua chamada Karl Marx Alle, anunciada pelo guia como um exemplar do estilo arquitetônico soviético. Fico curioso.
Já dentro do trem, no meio da viagem, percebo uma movimentação estranha. Dois sujeitos que pareciam passageiros pediam licença em meio à multidão, pedindo os bilhetes de todos. São prontamente obedecidos. Sinto um calafrio e entrego o meu. Eles o examinam e me dizem em inglês que meu ticket não estava validado. Sou convidado a descer da composição.
Na plataforma eles me interrogam. Um deles é magro e mais sério. Outro é um gordinho mais paciente e simpático. São da segurança do metrô. Eles me explicam que meu bilhete é de três dias, mas deveria ter sido validado na entrada da estação. Não existem catracas em nenhuma parada do metrô berlinense.
Digo que havia comprado meu bilhete no hotel (o que era verdade) e que não sabia que ele deveria ter sido validado (em termos – eu queria que o bilhete durasse pelo menos o meu tempo de estada em Berlim). O gordinho pergunta de onde sou. Eu mostro o passaporte brasileiro. Pergunta se eu falo alemão. Digo em inglês que não. Ele explica que é normal não saber das regras, complicadas para quem é de fora. Mas o problema é que meu bilhete era de fevereiro, e estávamos em maio. Eu poderia estar usando ele desde o começo do ano. O agente magro, enquanto isso, ficava no telefone, e percebi que falava com seus superiores do meu caso. Isso me deixava nervoso, e eu tentei disfarçar.
Como é que a segurança do metrô andava à paisana? Esperava gente uniformizada.
Perguntei ao gordinho:
- Vocês são da segurança do metrô?
- Ah, claro, desculpe. – Ele exibiu uma credencial pendurada no cinto.
O agente magro continuava às voltas com seus superiores. O gordinho aguardava instruções do colega, mas era simpático o suficiente para puxar assunto comigo, perguntando sobre o Brasil, talvez para quebrar o gelo. A situação era meio tensa.
Antes que o agente magro desligasse, lembrei de algo que podia me salvar:
- Eu não estou usando o bilhete desde fevereiro, é impossível. Cheguei aqui há quatro dias. Olhem meu passaporte.
O gordinho verifica que de fato desci em Frankfurt na data alegada. Conversa com o colega, que desliga o telefone. Eles concluem que estou de boa-fé, e o gordinho adverte:
- Olha, deveríamos lhe dar uma multa. Mas vamos levar você até a entrada da estação, o senhor valida o bilhete e pode voltar ao trem. E você já sabe a regra agora. Dito e feito, após eles me levarem até a máquina de validar, eles partem, intrépidos, em busca de outras fraudes no metrô.
Desço na estação da Karl Marx Alle já sem muita vontade de passear. Sento num café, ainda um pouco nervoso, e olho os prédios padronizados na mesma altura e estilo. Lembrava Brasília.
Pensava naquela tarde. À primeira vista, parecia estranha aquela queda pelo segredo, com agentes do metrô dando “incertas” em busca de passageiros fantasmas. Depois pareceu lógico. É um sistema de confiança, sem catracas. Todos tinham bilhetes, e ai de quem não tivesse, paga multa. Se eles usassem uniformes, não pegariam ninguém. Eles devem ter aprendido isso com o pessoal do lado oriental.
Não poderia imaginar, mas fui alvo de técnicas da finada Stasi.
Mais tarde entendi tudo. Se eles não deixaram nem o velho Erich Mielke em paz, aborrecendo-o com um processo por um crime de 70 anos atrás, porque deixariam escapar quem quer andar de metrô de graça?
Lembrar nessa hora de meu país, com sua Justiça lenta e incerta, com suas chacinas e latrocínios, seus traficantes e políticos, só me deixava pior. Que diferença desta Alemanha! Só torcia para que as compras de minha mulher tivessem sido boas.