Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

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Advogado, vive em São Paulo

sábado, março 01, 2008

As intermitências do riso

- O senhor entra em três minutos, seu Paulo.
- Certo. Temos casa cheia?
- Lotada.
Paulo Geraldo, ator consagrado nos teatros brasileiros, recebe os últimos retoques em sua maquiagem. Logo ele está sozinho no camarim de um luxuoso hotel paulistano, após o assistente e a maquiadora saírem. Gosta daquele minuto silencioso antes do espetáculo. Não há muito o que pensar, bastará apenas fazer o que sempre fez.
Até esqueceu de quando as coisas não eram fáceis. O sucesso o acompanha sem reclamar ou pedir aumento há anos. As platéias do teatro brasileiro são fáceis de lidar. Riem de tudo, e sempre aplaudem de pé ao final. Até mesmo quando o texto é uma porcaria, como aquele que iria recitar. Só topou fazer a peça por causa do patrocínio gordo, de um laboratório qualquer. A fraqueza da autora não impediu uma temporada lotada.
A peça é um monólogo onde ele vive um senhor de idade solitário que irá refletir durante uma hora sobre a vida e a morte. Reflexões muito chinfrins, aliás. A autora parece ter misturado um resumo de Nietzsche com momentos cômicos à la Moliére. Péssimo.
A peça já começa com um termo calão. “Que merda”, diz seu personagem. Parece que não seria do agrado do público. Mas houve uma sessão em que a tal da merda fez um sujeito na primeira fila gargalhar, o que espalhou ondas de riso pela platéia inteira. Riram até o final e aplaudiram até as mãos cansarem. Brasileiro gosta de tudo. Gostaram até da Yoko Ono e de sua performance ridícula no Municipal.
Hoje não vai ser diferente.
É chegada a hora. Paulo Geraldo entra no palco. Aplausos. Ele senta na poltrona a ele destinada. Emposta a voz grave, fica sério para antecipar os risos que virão, e profere a frase:
- Que merda.
Mas, desta vez, ninguém ri. Um gaiato na última fila ainda puxa um pigarro do fundo da garganta, que ecoa no silêncio e na escuridão.
Bom, diferente. Devem ter tido algum problema na entrada, vai ver a bilheteria fez confusão com os ingressos e lugares. A peça tem que seguir. Quero ver eles não rirem com a próxima:
- Quando ela me deixou, não ficou nem o papagaio.
Mais uma vez, ninguém riu. Paulo Geraldo segue com suas falas. Pouco tempo depois, consegue divisar no escuro do teatro que um moço dorme a sono alto na terceira fila. Na oitava, uma senhora parece mexer nos botões de seu celular, sem dar muita atenção aos impropérios de seu personagem.
Falas e mais falas. O ator se esforça. Insere “cacos” cômicos no monólogo. Nada. A platéia não ri, não reage, água gelada corre nas suas veias indiferentes, parecem suíços. Há um velho de braços cruzados e olhando fixamente para ele da segunda fila, com ódio no rosto vincado de rugas. Um casal jovem cochicha, olhando de soslaio, e consegue dali entender da conversa deles que eles parecem repetir o início da peça, “que merda”, “que merda”, mas não porque estejam gostando.
Outros cinco minutos passam. Um homem de meia-idade se levanta com estrépito e sai do teatro furibundo. Logo é seguido pelo casal que cochichava. Um outro homem magro sai também, esse em silêncio discreto.
E o inimaginável acontece. Do fundo do teatro, protegido pelo escuro e em meio à distração causada pelos que preferiram sair, um projétil faz um trajetória em parábola e atinge Paulo Geraldo em cheio no peito. Sua camisa se empapa de vermelho.
Ele não acredita que foi atingido. Apalpa o tórax e sente algo quente e mole escorrendo em direção ao abdômen. Não é seu sangue, e sim um tomate madurinho. Mas quem traria um tomate ao teatro? De onde ele teria saído?
Deveria dar uma bronca na platéia e interromper tudo. Mas era melhor ser profissional. Usou as mãos para remover os pedaços do tomate e fingiu que nada tinha acontecido. Só esperava que a platéia fosse solidária com seu esforço e com o desrespeito que sofrera. Seguiu com a próxima fala:
- Carnaval é coisa de gentinha.
Mais gente se levantou e saiu. O pessoal do fundo começou a puxar uma vaia, que logo se espalhou pelo teatro como um tsunami.
Mas isso não deve acontecer desde a semana de Arte Moderna, este ultraje, esta infâmia. Uma lata meio cheia de cerveja voa na direção de Paulo Geraldo, e não o atinge por pouco. O pano cai. Um assistente resgata o ator do palco. Outros objetos atingem a cortina pesada.
Do camarim Paulo escuta urros indistintos da platéia e gritos de dor. Parece que a segurança do hotel está enfrentando os espectadores.
Sua assistente se aproxima para limpar a camisa suja de tomate. Ele a afasta com um palavrão. Ele mesmo vai limpar isso. Ela sai do camarim.
O que será que aconteceu? O ator se pergunta enquanto esfrega com um pano a camisa manchada. Teriam os brasileiros, afinal, de uma hora para outra, adquirido senso crítico? Não iriam mais eles aplaudir de pé qualquer porcaria? Não iriam dar mais seu dinheiro aos medalhões e monstros sagrados consagrados como ele? Seria o fim do teatro nacional?
Força a memória. Está o ator a achar que o tomate voou na hora em que ele fez aquele merchandising mal disfarçado de um purgante fabricado pelo laboratório patrocinador, mas não tem certeza, é tarde para saber.
A temporada acabou. Pelo menos não teria mais que recitar aquele texto ruim, ele sim, uma merda. A autora teria que rezar para ainda ter seu emprego de volta no jornal, como copidesque.
Havia algo que lhe intrigaria por muito tempo. Por que alguém levaria um tomate ao teatro?
Paulo Geraldo sai pelos fundos do hotel e pega seu carro, escapa veloz. Mesmo dali podia ouvir gritos e o som de madeira se partindo.