As palavras necessárias
Para Domingos Módolo
* 17/10/1932
+ 25/04/2008
É uma sexta-feira. Recebo de manhã cedo a notícia de que meu avô, Domingos Módolo, o Mingo, havia morrido. Eu já sabia antes do telefone tocar. Foram quatro meses de vigília e luta contra um câncer.
Na hora eu não choro. Mas sabia que iria fazê-lo assim que chegasse no velório. Vamos até Cerquilho, interior de São Paulo, cidade onde ele passou sua vida inteira.
Recebo as condolências de parentes e de amigos dele. Passado o estranhamento inicial, ante meu luto, todos comentam como eu havia crescido. Gente que me carregou no colo.
Minha avó Meire está arrasada. Nada a consola. Ela chora, desesperada, ante a perda do homem, companheiro, amigo, com o qual ela passou 53 anos, quase três vezes a vida que ela passou sozinha antes de conhecê-lo.
As pequenas coisas começam a aparecer aos poucos. Não iremos mais pescar juntos. Não comerei mais seus sanduíches de lingüiça frita. Não lhe darei mais discos de música sertaneja no seu aniversário.
Vamos perdendo muita coisa nessa vida e ganhando muito pouco em troca. Eu perco um modelo de homem e uma voz ao pé da rede. Ganho apenas uma lápide para visitar no Finados.
As pessoas da vida inteira de Mingo se dirigem ao cemitério. Seguro uma das alças do caixão até o lugar que será sua morada até que a luz do Sol englobe a Terra.
Um pedreiro silencioso preenche de tijolo e cimento o jazigo. Todos aguardam. Penso em lhes dirigir algumas palavras. Na minha cabeça passa o seguinte:
- Em nome da família, quero agradecer a presença de todos vocês. O Mingo amou todos, e tenho certeza de que vocês o amavam. Ele não era figurão ou autoridade importante. Mas quero que vocês se lembrem sempre dele como alguém que viveu sua vida inteira aqui em Cerquilho, e que adorava esta cidade. Ele não gostava de sair daqui, nem de deixar sua casa. Ele trabalhou muito, incontáveis madrugadas, para vocês. Primeiro, por trinta anos como inspetor de alunos do Colégio Bernardes. Ele ajudou a educar vocês e muitos de seus filhos e netos. Depois ele assumiu a cantina da escola e ajudou a matar a fome dos alunos, professores e funcionários do Bernardes. E, após se aposentar, ele passou muito tempo preparando salgados para suas festas e para o comércio daqui. Muitos de vocês cresceram com a comida do Mingo. Obrigado a todos.
Não falei nada. Vi os olhos daquela gente e vi que eles sabiam daquilo tudo. Comento com minha família sobre o que eu queria ter dito. Minha mãe me chama de lado após sairmos de lá e diz que meu avô tinha muito orgulho de mim, e teria gostado se eu tivesse falado aquilo.
Na mesma noite, descobri que as palavras finais de meu avô foram mais belas e melhores do que qualquer coisa dita naquela tarde.
Naquele mesmo dia, minha avó acordou de madrugada. Mingo tinha febre e não dormia direito há muito tempo. Ele pediu água. Seu corpo fervia. O termômetro marcava 38,8°.
Ele apanhou o copo de sua mulher e engasgou no último gole. Ela o olhava apreensiva, angustiada. Você está bem, Nê? Você está bem, Nê?
Ele percebeu que ali era o fim de sua história. Ele estava em sua cama, em sua casa, em sua Cerquilho, nos braços da mulher amada, onde ele sempre quisera estar e terminar. Quantos homens eram assim abençoados? Um lampejo de lucidez o atingiu. Paz. Ele olhou para a mulher que amou por mais de 53 anos e disse:
- Eu estou bem. Eu estou muito bem.
Seus braços tombaram. Suas mãos se abriram e ele fechou os olhos.
* 17/10/1932
+ 25/04/2008
É uma sexta-feira. Recebo de manhã cedo a notícia de que meu avô, Domingos Módolo, o Mingo, havia morrido. Eu já sabia antes do telefone tocar. Foram quatro meses de vigília e luta contra um câncer.
Na hora eu não choro. Mas sabia que iria fazê-lo assim que chegasse no velório. Vamos até Cerquilho, interior de São Paulo, cidade onde ele passou sua vida inteira.
Recebo as condolências de parentes e de amigos dele. Passado o estranhamento inicial, ante meu luto, todos comentam como eu havia crescido. Gente que me carregou no colo.
Minha avó Meire está arrasada. Nada a consola. Ela chora, desesperada, ante a perda do homem, companheiro, amigo, com o qual ela passou 53 anos, quase três vezes a vida que ela passou sozinha antes de conhecê-lo.
As pequenas coisas começam a aparecer aos poucos. Não iremos mais pescar juntos. Não comerei mais seus sanduíches de lingüiça frita. Não lhe darei mais discos de música sertaneja no seu aniversário.
Vamos perdendo muita coisa nessa vida e ganhando muito pouco em troca. Eu perco um modelo de homem e uma voz ao pé da rede. Ganho apenas uma lápide para visitar no Finados.
As pessoas da vida inteira de Mingo se dirigem ao cemitério. Seguro uma das alças do caixão até o lugar que será sua morada até que a luz do Sol englobe a Terra.
Um pedreiro silencioso preenche de tijolo e cimento o jazigo. Todos aguardam. Penso em lhes dirigir algumas palavras. Na minha cabeça passa o seguinte:
- Em nome da família, quero agradecer a presença de todos vocês. O Mingo amou todos, e tenho certeza de que vocês o amavam. Ele não era figurão ou autoridade importante. Mas quero que vocês se lembrem sempre dele como alguém que viveu sua vida inteira aqui em Cerquilho, e que adorava esta cidade. Ele não gostava de sair daqui, nem de deixar sua casa. Ele trabalhou muito, incontáveis madrugadas, para vocês. Primeiro, por trinta anos como inspetor de alunos do Colégio Bernardes. Ele ajudou a educar vocês e muitos de seus filhos e netos. Depois ele assumiu a cantina da escola e ajudou a matar a fome dos alunos, professores e funcionários do Bernardes. E, após se aposentar, ele passou muito tempo preparando salgados para suas festas e para o comércio daqui. Muitos de vocês cresceram com a comida do Mingo. Obrigado a todos.
Não falei nada. Vi os olhos daquela gente e vi que eles sabiam daquilo tudo. Comento com minha família sobre o que eu queria ter dito. Minha mãe me chama de lado após sairmos de lá e diz que meu avô tinha muito orgulho de mim, e teria gostado se eu tivesse falado aquilo.
Na mesma noite, descobri que as palavras finais de meu avô foram mais belas e melhores do que qualquer coisa dita naquela tarde.
Naquele mesmo dia, minha avó acordou de madrugada. Mingo tinha febre e não dormia direito há muito tempo. Ele pediu água. Seu corpo fervia. O termômetro marcava 38,8°.
Ele apanhou o copo de sua mulher e engasgou no último gole. Ela o olhava apreensiva, angustiada. Você está bem, Nê? Você está bem, Nê?
Ele percebeu que ali era o fim de sua história. Ele estava em sua cama, em sua casa, em sua Cerquilho, nos braços da mulher amada, onde ele sempre quisera estar e terminar. Quantos homens eram assim abençoados? Um lampejo de lucidez o atingiu. Paz. Ele olhou para a mulher que amou por mais de 53 anos e disse:
- Eu estou bem. Eu estou muito bem.
Seus braços tombaram. Suas mãos se abriram e ele fechou os olhos.
2 Comments:
Oi, Luiz, sinto muito pela morte de seu avô.
Opa, obrigado, Rubens.
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