Lei Seca

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Advogado, vive em São Paulo

terça-feira, novembro 14, 2006

Resenhas Tardias: A Scanner Darkly

Essa Resenha será um tanto espúria. É tardia porque vi esse filme há duas semanas, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Mas na verdade é prévia, pois esse filme ainda não entrou em cartaz no Brasil no circuito comercial. E não é bem uma resenha, é mais uma desculpa para que eu fale de um escritor que todos adoram, que criou um universo com uma visão perturbadora do futuro, o autor da história que deu origem ao filme, Philip K. Dick.
Claro que vocês adoram. Ele escreveu os contos que deram origem a alguns filmes bem conhecidos. Blade Runner, Minority Report, O Vingador do Futuro (Total Recall), O Pagamento(Paycheck), Impostor, e agora este A Scanner Darkly.
Philip K. Dick era americano, nascido em 1928 e morto em 1982, algum tempo depois de ver uma premiére de Blade Runner e detestar. Foi um artista amargurado, gênio, na linha de Van Gogh e Fernando Pessoa. Como os dois, um criador daqueles bem à frente do seu tempo, tão à frente que ninguém os compreende em sua época, que o sucesso só alcança depois de morto. Em vida, comeu o pão que o diabo amassou (e diz a lenda que Dick comeu ração de gato para sobreviver). Hoje seu espólio é milionário. Ele dá nome a um dos principais prêmios literários de ficção científica dos EUA.
Philip K. Dick foi além. Ele escrevia sobre o futuro. Não profecias, mas ficção científica. Sobre um futuro que visualizou nas décadas de 50 e 60 do século passado (sua melhor fase). Um tempo que está chegando. Ou já chegou. Lembram de Robocop, filme de 1987? Pois é, era sobre a década em que estamos. Recordam-se de Exterminador do Futuro? É uma história com a trama ambientada na década de 1990 do século passado (em tempo: não são histórias de Dick).
A realidade adiou por mais algumas décadas algumas das visões da ficção científica do século passado, como carros voadores e a colonização de Marte. Mas Dick acertou ao visualizar o homem e a mulher do futuro. Era os mesmos, mas com tecnologias enlouquecedoras. E essa é a grande sacada de sua obra. Esqueçam Star Trek, e sua crença na bondade dos humanos, representados pelo escoteiro Capitão Kirk. Somos selvagens, e ainda o seremos amanhã.
Tenho duas coletâneas de contos de Dick lançadas no Brasil pela Record por ocasião da entrada em cartaz de filmes sobre suas obras: O Pagamento e Minority Report. Nelas pude ter uma amostra de como ele visualizava o futuro. Um amanhã sem crimes, em que cassandras aprisionadas prevêem estes antes que aconteçam (no conto e filme Minority Report). Um porvir em que extraterrestres poluem a mente de nossas crianças com um jogo antípoda do Monopólio, a fim de obter lucros no comércio (conto Jogos de guerra).
O que dizer de uma história em que Dick imagina um mundo em que cadáveres podem ressuscitar por curtos períodos, e discute as implicações legais e sociais disto (O que dizem os mortos)?
Outras histórias de Dick, que hoje são filme, merecem comentário. Viagens imaginárias para Marte e que dão muito errado (no conto Podemos recordar para você, por um preço razoável, e no filme O Vingador do Futuro). A luta de um genial projetista cuja memória foi apagada para recordar o passado e evitar seu próprio fim por ter inventado uma máquina que prevê o futuro (Conto e filme O Pagamento). Um mundo em que os Estados Unidos da América são governados por um super-computador, e cujo suplente humano, o Presidente, é apenas um emprego aborrecido e mal-pago ocupado por um sindicalista (nada a ver com o Lula, que ganha bem e se diverte à beça), no conto Plantão.
Em outra história de Dick (As Pré-Pessoas) o assassinato de crianças de até doze anos de idade é considerado como um mero aborto, não-punível pela lei.
Faço menção especial à tocante história Uma coisinha para nós, temponautas, em que viajantes temporais, falecidos na explosão de sua máquina do tempo, ficam aprisionados num limbo entre presente e futuro que se repete sem cessar, vivos e mortos ao mesmo tempo, e a ponto de serem homenageados e compareceram aos próprios funerais, desfilando em carro aberto.
Creio que o final da história é arrepiante (não leiam o trecho seguinte se forem ler o conto):
Grandes gotas de água atingiram o pára-brisa. Começara a chover. Aquilo também o agradava. Fazia-o lembrar da maior experiência de sua curta vida: o cortejo fúnebre movendo-se lentamente pela Pennsylvania Avenue, os caixões cobertos com bandeiras. Fechando os olhos, recostou-se e sentiu-se bem afinal. E ouviu novamente ao seu redor as vozes da multidão enlutada. Em sua mente, sonhou com a medalha especial do Congresso. Pelo cansaço, pensou. Uma medalha por ter se cansado.
Imaginou ele mesmo em outros cortejos, e na morte de muitos. Mas na verdade era apenas uma morte e um cortejo. Carros que se moviam lentamente ao longo da rua em Dallas, e também com o dr. King... Viu-se a si mesmo voltando diversas vezes, em seu circuito fechado de vida, ao luto nacional que não poderiam jamais esquecer. Estariam lá. Sempre estariam. Sempre seria assim, e eles voltariam juntos, repetidas vezes, para sempre. Para o lugar, para o momento em que queriam estar. O evento mais significativo de suas vidas.
Esse era o seu legado para eles, para o seu povo, para o seu país. Ele dera ao mundo um fardo maravilhoso. O assustador e exaustivo milagre da vida eterna.

Esta história parece apenas ser uma ficção científica viajante. Lendo atentamente, ela fala de algo mais do que viagens no tempo. Trata da posteridade, do nosso desejo de deixar um legado, de ter atenção. É algo sempre presente nas pessoas de ontem, hoje, e do futuro, o tempo preferido de Philip K. Dick. Para o escritor, a melhor forma é assistir ao seu próprio e concorrido funeral, com honras de chefe de Estado.
O espaço deste texto vai acabando. Ué, mas não era uma resenha sobre A Scanner Darkly?
Bom, era para ser. Porém, sendo exceção no que se refere à produção de Dick, não gostei muito do filme.
Creio que a história original deve ser bem melhor. Scanner foi filmado com atores (Keanu Reeves, Woody Harrelson, etc.), normalmente, e depois foi convertido numa animação. Creio que não era necessário, pois o resultado é meio tosco e irregular.
Trata da história de um detetive que está no encalço de um bandido, traficante de uma poderosa nova droga, que na verdade é sua outra personalidade. Era uma história boa, mas faltou um diretor mais conciso e claro. Há longas seqüências desnecessárias na montagem.
O próprio fato de ser uma animação matou um pouco da interpretação dos atores. Apesar de seu personagem, graças ao desenho sobreposto sobre sua imagem, soar meio caricatural, ainda se vê que Robert Downey Jr. (quando não está encrencado na vida real) ainda manda bem.
Ainda espero que outras histórias de Philip K. Dick virem filme. Torço por Plantão e Uma coisinha para nós, temponautas.

Ficha Técnica - A Scanner Darkly - EUA/2006, 100 min. Ficção Científica. Dir. Richard Linklater