O caso dos exploradores de marquise
“Todo tiempo pasado fue mejor”, provérbio argentino
Acoste-se ao lado do fogo que crepita, viajante, e sirva-se de um naco de carne quente. Contarei uma história que se passou antes das águas do Atlântico cobrirem o que chamavam de Nova York, numa cidade também já engolida pelos mares, Santos.
É uma noite na vida de um menino cabeçudinho, magricelo e que gostava de correr em espaços abertos, chamado Guto...
Tá bom, parei, vou contar de maneira informal.
É sobre minha infância, em Santos. Morava num prédio no bairro do Boqueirão, e meus amigos eram Fábio, Eduardo e Paulo. Creio que foi perto do meu aniversário ou do dia das Crianças, pois eu tinha ganho um boneco dos Comandos em Ação, e que vinha com uma pintura de guerra, em cores de camuflagem do exército. Chocante, como diziam.
Aquela tinta nos excitou como índios e fez renascer o nosso instinto explorador. Já havíamos exaurido o bairro e o Canal 4, que era nosso limite natural (o Canal 1, a meros três quilômetros, era considerado um fim de mundo). Já havíamos pulado os muros do colégio para apanhar as bolas de futebol de volta e entrado num casarão velho dos arredores. Não faltava nada.
Exceto a marquise do prédio.
Vizinha ao primeiro andar, ela era a última fronteira, onde nenhum morador do Gold Star, exceto o zelador, já havia ido antes. Guardada por afiados cacos de vidro colorido, parecia uma fortaleza inexpugnável. Tínhamos que conquistá-la.
Mas precisávamos criar coragem antes. Um dos amigos propôs, numa noite, que cumpríssemos uma tarefa mais simples, antes da marquise. Havia uma empresa de transporte, Benfica, que costumava deixar uns cinco ônibus estacionados na nossa rua, em frente ao colégio. Os motoristas dormiam no bagageiro. Resolvemos que iríamos nos arrastar por baixo dos ônibus, até o outro lado, depois do último.
Corri ao meu quarto e peguei a pintura de guerra. Com o rosto devidamente camuflado, reunimos a tropa na frente do primeiro ônibus.
Deitamos no chão e começamos a nos arrastar. O chão era de paralelepípedos, e oferecia resistência. A rua era suja. Mas não era difícil imitar cobras, ríamos. Um, dois, cinco ônibus, rastejamos muito. Após a escuridão dos subterrâneos, estávamos de volta à luz. Saímos do chão como quem nasce. Todos estavam negros de graxa e poeira. Vitória.
Na euforia, alguém sugere:
- Vamos subir na marquise. Hoje!
Nada podia nos deter, vamos lá. Subimos até a garagem do prédio e encostamos a frágil escada de madeira suja de tinta branca na beirada da marquise. Largamos os chinelos no chão. Um a um todos escalaram. Com um lance de pé evitamos os cacos de vidro. Estávamos no espaço.
Avistamos as luzes da cidade. As estrelas. Era um novo ângulo do mundo. Janelas fechadas e abertas. Vizinhos dormiam, alguns viam TV. Pena, não havia nenhuma moça trocando de roupa. Andamos de um lado a outro. Ninguém notou. Corremos. Rimos. Tiramos sarro do zelador. Cantamos músicas do Trio Esperança (de um disco já velho naquela época que ouvíamos...).
Devíamos descer antes que o guarda-noturno acordasse. Fui primeiro. Dei um golpe de pé esquerdo e ultrapassei a amurada e os cacos, alcançando a escada. Firme no apoio, puxei o outro pé, mas senti ele batendo em algo. Desci os degraus preocupado.
No chão, olhei devagar para baixo, receoso do que encontraria. Havia um corte no pé direito, um pouco abaixo do tornozelo, e sangue jorrava. Sentei e tentei apertar a ferida, só empapando minha mão de vermelho.
Os outros desceram rápido. Fábio já correu para chamar minha mãe. Gritei para que ele não fizesse isso. Tinha medo da bronca. Fiquei derrotado no chão, sem me mexer.
Ela chegou, já trazendo uma toalha, enrolando tudo sem olhar, e o diagnóstico:
- Ai, Guto, vai ter que dar ponto.
Fomos ao pronto-socorro eu, ela, e meu pai dirigindo. Eu ainda tinha a cara cheia de tinta de guerra, mas não ganharia uma Estrela Púrpura, uma Cruz de Ferro ou outra medalha por ter me ferido. Talvez um castigo. Aprendi o que são pontos, sendo costurado.
A missão da marquise acabou em fracasso, com feridos e um banho de sangue.
Foi assim que ganhei a minha primeira cicatriz, a pioneira de uma série de dentes quebrados, marcas no corpo e corações partidos.
Acoste-se ao lado do fogo que crepita, viajante, e sirva-se de um naco de carne quente. Contarei uma história que se passou antes das águas do Atlântico cobrirem o que chamavam de Nova York, numa cidade também já engolida pelos mares, Santos.
É uma noite na vida de um menino cabeçudinho, magricelo e que gostava de correr em espaços abertos, chamado Guto...
Tá bom, parei, vou contar de maneira informal.
É sobre minha infância, em Santos. Morava num prédio no bairro do Boqueirão, e meus amigos eram Fábio, Eduardo e Paulo. Creio que foi perto do meu aniversário ou do dia das Crianças, pois eu tinha ganho um boneco dos Comandos em Ação, e que vinha com uma pintura de guerra, em cores de camuflagem do exército. Chocante, como diziam.
Aquela tinta nos excitou como índios e fez renascer o nosso instinto explorador. Já havíamos exaurido o bairro e o Canal 4, que era nosso limite natural (o Canal 1, a meros três quilômetros, era considerado um fim de mundo). Já havíamos pulado os muros do colégio para apanhar as bolas de futebol de volta e entrado num casarão velho dos arredores. Não faltava nada.
Exceto a marquise do prédio.
Vizinha ao primeiro andar, ela era a última fronteira, onde nenhum morador do Gold Star, exceto o zelador, já havia ido antes. Guardada por afiados cacos de vidro colorido, parecia uma fortaleza inexpugnável. Tínhamos que conquistá-la.
Mas precisávamos criar coragem antes. Um dos amigos propôs, numa noite, que cumpríssemos uma tarefa mais simples, antes da marquise. Havia uma empresa de transporte, Benfica, que costumava deixar uns cinco ônibus estacionados na nossa rua, em frente ao colégio. Os motoristas dormiam no bagageiro. Resolvemos que iríamos nos arrastar por baixo dos ônibus, até o outro lado, depois do último.
Corri ao meu quarto e peguei a pintura de guerra. Com o rosto devidamente camuflado, reunimos a tropa na frente do primeiro ônibus.
Deitamos no chão e começamos a nos arrastar. O chão era de paralelepípedos, e oferecia resistência. A rua era suja. Mas não era difícil imitar cobras, ríamos. Um, dois, cinco ônibus, rastejamos muito. Após a escuridão dos subterrâneos, estávamos de volta à luz. Saímos do chão como quem nasce. Todos estavam negros de graxa e poeira. Vitória.
Na euforia, alguém sugere:
- Vamos subir na marquise. Hoje!
Nada podia nos deter, vamos lá. Subimos até a garagem do prédio e encostamos a frágil escada de madeira suja de tinta branca na beirada da marquise. Largamos os chinelos no chão. Um a um todos escalaram. Com um lance de pé evitamos os cacos de vidro. Estávamos no espaço.
Avistamos as luzes da cidade. As estrelas. Era um novo ângulo do mundo. Janelas fechadas e abertas. Vizinhos dormiam, alguns viam TV. Pena, não havia nenhuma moça trocando de roupa. Andamos de um lado a outro. Ninguém notou. Corremos. Rimos. Tiramos sarro do zelador. Cantamos músicas do Trio Esperança (de um disco já velho naquela época que ouvíamos...).
Devíamos descer antes que o guarda-noturno acordasse. Fui primeiro. Dei um golpe de pé esquerdo e ultrapassei a amurada e os cacos, alcançando a escada. Firme no apoio, puxei o outro pé, mas senti ele batendo em algo. Desci os degraus preocupado.
No chão, olhei devagar para baixo, receoso do que encontraria. Havia um corte no pé direito, um pouco abaixo do tornozelo, e sangue jorrava. Sentei e tentei apertar a ferida, só empapando minha mão de vermelho.
Os outros desceram rápido. Fábio já correu para chamar minha mãe. Gritei para que ele não fizesse isso. Tinha medo da bronca. Fiquei derrotado no chão, sem me mexer.
Ela chegou, já trazendo uma toalha, enrolando tudo sem olhar, e o diagnóstico:
- Ai, Guto, vai ter que dar ponto.
Fomos ao pronto-socorro eu, ela, e meu pai dirigindo. Eu ainda tinha a cara cheia de tinta de guerra, mas não ganharia uma Estrela Púrpura, uma Cruz de Ferro ou outra medalha por ter me ferido. Talvez um castigo. Aprendi o que são pontos, sendo costurado.
A missão da marquise acabou em fracasso, com feridos e um banho de sangue.
Foi assim que ganhei a minha primeira cicatriz, a pioneira de uma série de dentes quebrados, marcas no corpo e corações partidos.
1 Comments:
Menino levado.....menino travesso.....rs. Brincadeiras inocentes e tão reais!!!
Adorei sua narrativa.....comparei com brincadeiras das meninas, completamente diferentes.
Abraço,
Rubia
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