Lei Seca

Um espaço para discutir as grandes questões. Editor-chefe: Luiz Augusto

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Advogado, vive em São Paulo

segunda-feira, agosto 13, 2007

Meninos nada sabem de guerra

Em minha infância costumava passar as férias na cidade de meus avós, Cerquilho, no interior de São Paulo. Lugarejo calmo e pacífico. Creio que fui da última geração que ainda podia brincar na rua sem medo de violência ou de pedófilos, e sem estar trancado num condomínio fechado.
Cerquilho era uma espécie de território livre. Ficava solto nas ruas, correndo e andando de bicicleta até os limites em que a cidade se encontrava com a zona rural. Subia nas árvores e invadia as construções. Quase tudo podia acontecer. Até mesmo uma guerra.
Meu companheiro de aventuras era meu primo Everton. Ele tinha um bom coração, mas não era o tipo intelectual. Era forte e parrudo, e andando com ele eu sabia que ninguém iria mexer comigo, eu que era visto como uma espécie de matuto da cidade grande.
Certa feita, numa dessas temporadas lá, Everton cismou com um vizinho seu, um outro menino chamado Robledo. Para meu primo, Robledo era culpado de tudo, apesar de ser apenas um e bem menor que ele. Ele era acusado de jogar terra na casa e furar os pneus do carro de seu pai. De roubar as goiabas do pé e de mover a cerca mais para seu lado. Só não foi acusado de engravidar as mulheres de sua família. Éramos meninos.
Everton começou sua batalha contra Robledo. Como meu aliado e parente, não podia deixar de ajudá-lo. Atacávamos ele com água e terra. Ele revidava. Colocávamos bombas de “mil” (cruzados, a moeda da época) na frente de sua casa, puro terrorismo anarquista. Ele colocava bombas de “cinco mil”, as mães de todas as bombas, na casa de Everton e na da minha avó. A rua se sacudiu com o confronto. Os cachorros latiam e uivavam. Os cavalos relincharam. A orelha de Everton ardeu com os puxões de sua mãe. Nossos gritos ecoavam de um lado a outro:
- Morfético!
- Lazarentos!
- Tísico!
Apesar de nossos esforços, cada dia Robledo ressurgia mais sujo e agressivo. Everton, sem os dotes de Cícero, proferia furiosas catilinárias contra seu nêmesis. “Até quando vais abusar da nossa paciência, ó Robledo?” Meu primo partiu para as vias de fato, desferindo uns bons cascudos no seu inimigo. Mas isso só o enfureceu ainda mais, que continuou a nos fustigar com suas bombas e bexigas de água, chamadas de “bombuchas”.
As batalhas prosseguiram por um tempo, atingindo um impasse. Até que um dia meu primo, num rompante de aparente lucidez, me disse:
- Vamos fazer a paz com ele. Passe essa tarde no quintal que vamos nos preparar.
Após o almoço voltei à casa de Everton. Ele estava no quintal, e me levou até o galinheiro. No pequeno galpão ele me mostrou os seus termos de paz, as suas condições. Inúmeras “bombuchas” prontas e amarradas, cheias até a borda, úmidas. Algumas vazavam, escorrendo água no chão. Ele me anunciou seu plano:
- Vá até a casa daquele caipora e fale que queremos fazer a paz. Que amanhã vamos visitar ele e ficar amigos. Na hora que estivermos lá dentro ele vai receber toda essa água na cabeça.
Dito e feito. Eu podia chegar perto da casa de Robledo sem receber um petardo, ao contrário de meu primo. Toquei a campainha, ele atendeu meio desconfiado, e eu me fiz de arauto da paz. Robledo concordou, amanhã estaríamos lá.
No dia seguinte, no horário combinado, fomos até a fortaleza inimiga. Era uma missão suicida. Mas se fosse vitoriosa, estaríamos livres dele. Levávamos as “bombuchas” nos bolsos.
Ele nos recebeu até aliviado. Creio que ele queria mesmo a paz. Fomos até os fundos, onde uma mesa estava posta com bolachas e limonada. As mulheres de sua casa, mãe e irmã, nos sorriam. Ele sentou e conversamos um pouco.
Confesso que fiquei com pena. A mesa posta, as bolachas, a limonada, o inimigo desarmado e confiante. Haveria tempo para resolver tudo da melhor maneira? Não houve. Um minuto depois Everton se levantou com um grito, arremessando uma “bombucha” bem na face de seu rival:
- Já!
Hesitei um pouco, mas não havia mais o que fazer. Robledo já urrava de raiva, quando eu o acertei na cabeça também. Cada um dos atiradores ainda conseguiu jogar mais uma “bombucha” antes de fugir da casa, com Robledo furioso em nosso encalço. De relance pude notar a mãe de Robledo dando risada. Creio que ela devia estar pensado: “Esses meninos...”
Corremos, deixando a cena do crime para trás. Algumas quadras depois paramos a fim de recuperar o fôlego. Nem sinal de Robledo.
Everton estava eufórico. Havíamos vencido. Ele nunca mais nos incomodou, perdeu face, estava desmoralizado demais perante a rua para revidar. Ficou com fama de bobo, por ter sido alvo de tamanho golpe em sua própria casa.
Ganhamos, sim. Mas creio que perdemos um possível amigo.
Meu primo ainda mora por lá. De Robledo nunca mais ouvi falar, creio que mudou de cidade (não por causa disso, espero...). Eu ganhei e perdi outras batalhas por aí.
E pensar que até aquele momento nunca tínhamos ouvido falar do cavalo de Tróia. Jamais abrimos compêndio algum de Grotius, Clausewitz ou Maquiavel. Não sabíamos quem era Hobbes, que o homem era o lobo do homem, ou tínhamos ouvido as lições do Cardeal Mazarin. Ninguém nos explicou o que era trégua, armistício, termos de rendição. Devíamos ter feito a paz. Mas meninos nada sabem de guerra.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Guto
Tempos que não voltam mais !
quantas saudades, de poder
reviver os tempos, e voltar a ser criança novamente !
Parabéns!
Adalberto

13/8/07 17:51  
Anonymous Anônimo said...

Luiz,
Tão boa qto a anterior....adorei!!!
Acho que está num momento saudosistaaaaaaa.
Vc é "supimpa" em seu modo de escrever.
Parabéns mais uma vez.
Rubia

13/8/07 23:39  
Blogger Luiz Augusto said...

Valeu gente, you´re far too kind!

14/8/07 21:53  

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