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Tempos atrás, aluguei um filme numa locadora situada na Avenida Paulista. Quando precisei devolver o filme, por falta de vaga, atravessei o carro na calçada e corri até a loja, esbaforido, com medo que um marronzinho colocasse um doloroso adicional ao preço da locação. No balcão, uma mocinha de azul me olhou com má-vontade enquanto eu fazia minha entrada triunfal. Larguei o filme em suas mãos, me desculpando pela pressa. Enquanto saía pela mesma porta, ouvi ela reclamando que eu devia sair pela porta de saída, do outro lado. Dei de ombros e repeti que estava apressado. Peguei o carro, não havia multa. Mas achei absurdo a atitude dela. Que diferença fazia que porta alguém entra ou sai?
Continuei freguês deles, sem nenhuma lembrança do incidente. Aí, mais recentemente, peguei um DVD riscado na mesma loja. Reclamei ao devolver, não pude ver o final do filme. Dois dias depois, pedi a uma funcionária, outra, que olhasse para mim o resultado da reclamação. Ela digitou meu nome completo e acessou meu cadastro. Para minha surpresa, havia uma espécie de prontuário. Inverto a ordem. A segunda entrada dizia: “Cliente reclamou de risco no DVD. Produto checado. Não foi constatado erro”. Isso só indicava que não veria o final de um filme alugado. Tudo bem.
A primeira entrada era mais pesada: “Cliente quis sair pela porta de entrada”.
Que invasão de privacidade! Então o incidente só estava esquecido para mim? E ficará para sempre nos anais da locadora. Mesmo que todos os que envolvidos naquele fatídico dia de minha pressa não trabalhem mais lá, não sejam mais clientes, ou morram. Mesmo que o aquecimento global, daqui a milhares de anos, engula São Paulo sob as águas do Atlântico (que exagero...). Mesmo que o português se junte ao latim como língua morta, e ninguém entenda o que aquela frase quer dizer. Para todo e sempre constará nos computadores da locadora: “Cliente quis sair pela porta de entrada”.
Para ficar numa imagem de filme já imaginei o capitão Nascimento, do Tropa de Elite, dizendo para mim, furioso: “Pede para sair, 01. Pede para sair pela entrada”.
Todo esse tempo eu era uma piada ambulante. Cada vez que eu peguei um filme lá, às minhas costas, os funcionários diziam: “Ah, é aquele cara que quis sair pela entrada”. Ou, com raiva: “Esse folgado quis sair pela outra porta”. Talvez algo do gênero: “Ele é o Bizarro, da Liga do Mal. Ele faz tudo ao contrário. Ele entra pela saída e sai pela entrada”.
Formulei uma reclamação, a terceira. Quero que não conste que fiz a primeira reclamação. Se preciso, entrarei com um habeas data para isso, ou outra medida judicial cabível.
Mas seria isso universal? Em toda loja constará um cadastro desses (nove foras o nome no SPC e no SERASA)? Por exemplo, no restaurante há algo no meu nome do gênero: “Pediu carne no ponto e reclamou que estava cru”, de 1999. Ou na loja de sapatos há um “provou modelo por meia hora, achou apertado e não comprou”, fato ocorrido em 2002. No cabelereiro há um “O moço queria deixar as madeixas compridas. Cortei curto de sacanagem”, datado de 1991.
Um dia de mau humor e estacionamento irregular nos custa um registro perpétuo num banco de dados.
Tudo isso é muito estranho. Lembra aquele conto do Borges. Em algum canto da eternidade há um gigantesco quadro-negro para cada pessoa. Ele contém cada palavra do dicionário, e uma contagem. Lá está o número de vezes em que alguém comerá kiwi ou terá relação com essa fruta. A vida avança, e as palavras vão sendo riscadas do quadro. Quando a palavra coração é riscada pela última vez, é seu fim. É a última batida.
Em algum lugar, num computador velho, para toda a eternidade, constará sobre mim: “Cliente quis sair pela porta de entrada”. Essa não será riscada nunca do quadro-negro da minha vida.
Talvez isto conste da minha lápide, é um bom lema: “Eu saí pela porta de entrada”. Sem trocadilho infame.
Continuei freguês deles, sem nenhuma lembrança do incidente. Aí, mais recentemente, peguei um DVD riscado na mesma loja. Reclamei ao devolver, não pude ver o final do filme. Dois dias depois, pedi a uma funcionária, outra, que olhasse para mim o resultado da reclamação. Ela digitou meu nome completo e acessou meu cadastro. Para minha surpresa, havia uma espécie de prontuário. Inverto a ordem. A segunda entrada dizia: “Cliente reclamou de risco no DVD. Produto checado. Não foi constatado erro”. Isso só indicava que não veria o final de um filme alugado. Tudo bem.
A primeira entrada era mais pesada: “Cliente quis sair pela porta de entrada”.
Que invasão de privacidade! Então o incidente só estava esquecido para mim? E ficará para sempre nos anais da locadora. Mesmo que todos os que envolvidos naquele fatídico dia de minha pressa não trabalhem mais lá, não sejam mais clientes, ou morram. Mesmo que o aquecimento global, daqui a milhares de anos, engula São Paulo sob as águas do Atlântico (que exagero...). Mesmo que o português se junte ao latim como língua morta, e ninguém entenda o que aquela frase quer dizer. Para todo e sempre constará nos computadores da locadora: “Cliente quis sair pela porta de entrada”.
Para ficar numa imagem de filme já imaginei o capitão Nascimento, do Tropa de Elite, dizendo para mim, furioso: “Pede para sair, 01. Pede para sair pela entrada”.
Todo esse tempo eu era uma piada ambulante. Cada vez que eu peguei um filme lá, às minhas costas, os funcionários diziam: “Ah, é aquele cara que quis sair pela entrada”. Ou, com raiva: “Esse folgado quis sair pela outra porta”. Talvez algo do gênero: “Ele é o Bizarro, da Liga do Mal. Ele faz tudo ao contrário. Ele entra pela saída e sai pela entrada”.
Formulei uma reclamação, a terceira. Quero que não conste que fiz a primeira reclamação. Se preciso, entrarei com um habeas data para isso, ou outra medida judicial cabível.
Mas seria isso universal? Em toda loja constará um cadastro desses (nove foras o nome no SPC e no SERASA)? Por exemplo, no restaurante há algo no meu nome do gênero: “Pediu carne no ponto e reclamou que estava cru”, de 1999. Ou na loja de sapatos há um “provou modelo por meia hora, achou apertado e não comprou”, fato ocorrido em 2002. No cabelereiro há um “O moço queria deixar as madeixas compridas. Cortei curto de sacanagem”, datado de 1991.
Um dia de mau humor e estacionamento irregular nos custa um registro perpétuo num banco de dados.
Tudo isso é muito estranho. Lembra aquele conto do Borges. Em algum canto da eternidade há um gigantesco quadro-negro para cada pessoa. Ele contém cada palavra do dicionário, e uma contagem. Lá está o número de vezes em que alguém comerá kiwi ou terá relação com essa fruta. A vida avança, e as palavras vão sendo riscadas do quadro. Quando a palavra coração é riscada pela última vez, é seu fim. É a última batida.
Em algum lugar, num computador velho, para toda a eternidade, constará sobre mim: “Cliente quis sair pela porta de entrada”. Essa não será riscada nunca do quadro-negro da minha vida.
Talvez isto conste da minha lápide, é um bom lema: “Eu saí pela porta de entrada”. Sem trocadilho infame.
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